ENTRE NÓS {FRANCIORLYS VIANA}

“Às vezes um segredo pode se tornar um punhal enterrado na carne” 
Eneida Cortázio Botelho




– Procura um médico, ou vais morrer... – Annece.
– Já procurei. O doutor Hipócrates vai me atender hoje à tarde – Bloch replicou. Deu a última cusparada, abluindo a boca do azedume. Vomitara uma substância escura; reparou fios de sangue mechando-a.

Annece dobrava roupas. Entreviu a vomição do esposo, por sorte, se tivesse atentado em zoom, perceberia a substância ebulir bolhas graúdas. Espocadas, barulhariam no quarto inteiro. Bloch agiu rápido, tirou a blusa e encobriu. Buscou uma pá. Recolheu. Jogou na lixeira externa da residência.

Enxugando, usa o dedo indicador, o suor da testa, expressou a um gato preto que veio sentar-se ao lado de seu pé:
– Foi por um triz, bichano... Por um triz... – entrou.

Entrou o gato na lixeira. Só se ouviu o miado em desespero. Minutos de quietude. Abriu-se a tampa. O osso do animal foi arrojado longe.

No espelho do closet, Bloch apalpa a barriga – que sobejou dela –, de um mês para cá, cresceu-lhe um tumor, aflorado no umbigo. Tumor é modo de dizer. Parecia uma bola de handebol, dado seu tamanho grotesco.

Bloch teve ojeriza por aquela bolota de carne, ainda mais por saber sua origem... Sem que Annece perceba, apanha uma faca de pão, cisca o tumor, incentivando um denodo. Quem sabe amputasse aquilo de si, aquela bosta não lhe permitia sequer foder. Naftalina perdera o interesse sexual – não tem culpa. Quem desejaria transar com um homem possuidor de uma esfera rica em veias, densidade maleável, como silicone. Não vindo coragem, deixou a faca cair na pia. Sentiu uma fisgada no olho do tumor, e outra, e outra, e outra. Seus olhos esbugalharam, quase grita. Não o fez porque lutava para não suscitar pulgas atrás da orelha na esposa.

No lugar onde fisgava, nas paredes umbigo, uma impigem. Ali, exatamente ali, iniciou a esfera.

– Foi aqui, esta impigem..., aqui, depois que..., esta bolota, surgiu esta bolota... – Bloch religa o Tempo.

Os outros caçadores, seus amigos, tinham ido dormir. Bloch polia o rifle. Ego nos píncaros por ter alvejado três pacas e um porco-do-mato. Corujas rasgavam o ar. Entrou em alerta o instinto matador. Armou mira na direção das árvores. Inlocalizou as aves agourentas. Resolveu entrar na mata. A insônia não permitiria repouso mesmo. Ia se distrair. Dia seguinte voltaria para Anankeópole, para o trabalho, para Annece.

Caminhou dez minutos sem sucesso. Percebia folhas se mexendo. Mas as benditas corujas não se mostravam. Um feixe de luz atingiu sua face. Vinha detrás de troncos de jequitibá. A luz contrastava com o negror da noite. “Que diabo é isso?”. Assumiu cautela. Esgueirou-se. Sussurros de gente falando. Não era uma linguagem clara. Inglês, alemão... Nem Este narrador conseguiu distinguir. Bloch se deitou. Agora se arrastaria, para não correr risco de ser visto. Um metro, dois, três e ploft! Algo pesado caiu em suas costas. Bloch se virou alarmado. A coisa rolou no chão. Escorado num tronco, usou o cabo do rifle para remexer o solo, tapete de folhas. Deu com uma coruja tesa; como se tivesse sido empalhada. Os olhos do animal permaneciam vivos, e o trespassavam. Uma língua olhareística, fosse um pidgin, bastaria para expressar um aviso. A coruja teria avisado. Então, seus globos oculares se despregaram do encaixe, rolaram. Bloch sentiu o estômago embrulhar. “Merda! Que porra é essa?”.

Os sussurros cessaram.

Recomposto, Bloch cruzou o limiar entre o conhecido e o desconhecido. Enxergou o que muitos ufólogos só conhecem em teoria: uma nave espacial, embaixo dela, figuras humanoides encapuzadas em torno de um altar. Formação circular, não era possível ver o que faziam. Bloch ignorou ser um óvni – dedução deste narrador –, pensou se tratar de algum treinamento da Força Área. Observou que havia uma alternância entre eles. Um entrava no meio da roda, o outro saía, depois regressava.

A curiosidade, assassina de felinos, coçou-lhe a mente. Descobriria o que faziam os homens encapuzados. Pé a pé, pé a pé, pé a pé. Ocultou-se atrás de uma pedra. Espionou. Avistou sobre o altar – um retângulo luminoso – uma mulher nua, desacordada, sendo violada por um dos homens encapuzados. Homens? Tirado o ornamento, estava despido, e não, senhores! Não detinha aparência humana! Salvo, a corpostrutura. No mais: tinha pequenos chifres espalhados ao longo do que poderia ser a coluna vertebral; uma cabeça sem olhos, sem nariz, ou boca; mãos duplas, com dedos alongados, visguentos, cobertos de escamas. Tinham cauda. Esta cauda passava-lhe por baixo das pernas, se introduzia na vagina da mulher. O movimento que fazia era similar ao humano: vai-e-vém, vai-e-vém, vém-e-vai vém-e-vai. Ela vertia sangue por virilhas arroxeadas.

O estupor de Bloch acabou sendo sua desgraça. Sentiu a cabeça girar, antecedência de desmaio. Apertou instintivamente o rifle. Deflagrou sem querer. Bam!A besteira estava feita. Flagraram-no, os homens encapuzados.

Não desmaiou. O tiro devolveu-lhe o tino. Impulsão para fugir. Nem viu como foi atado pelos braços, meio que os alienígenas – ou homens encapuzados, se assim o leitor se afetuou – se teletransportaram. Este narrador, perplexo, está limitado em sua narração. Sei tanto quanto Bloch sobre o modo que eles utilizaram para locomoção de um lugar ao outro. Quando dei conta, estava nosso personagem como está: neutralizado ao pé do retângulo.

Que farão com ele, estes óvnis?

Um, transparecendo aspecto de mandatário, tomou a voz e comunicou algo lá em sua língua; um chiado de rádio fora de sintonia.

O violador se retirou da mulher. Um grupo carregou-a para outro lugar. Sumiu. Dois deles ergueram Bloch e o deitaram no altar, em posição de bruços.

Bloch em vão berrava palavrões, súplicas, e se debatia. O alienígena-líder impôs as mãos sobre ele, paralisou-o (igual a coruja caída do céu). Seus olhos tinham consciência do entorno. Sentiu quando lhe arrancaram as vestes. Prenúncio. Não podia ser... Não podia... Bizarro! O violador se aprumou – garanhão das galáxias. Este narrador assistiu a cauda crescer, girar como lâmina de furadeira, escorrer, e penetrar o ânus de Bloch. Arriei as pálpebras sob o custo de ficar sem ter o que narrar.

Abri minha visão e eles tinham ido. Bloch mantinha os olhos abertos – morto, quem lhe obsequiará um passar de mãos que o libertem desta existência-gaiola? – na direção deste narrador. Todo narrador é invisível para personagens, por isso, me enxergou não. Quis ajudá-lo, as leis naturais da teoria narrativa me impediram (“fodam-se os teóricos e seus postulados acadêmicos!”, vociferei para mim mesmo, na solidão de minha companhia). Presenciei o corpo de Bloch retornando ao seu domínio. Ele se assentou. Cabisbaixo. O que ocorrera consigo? Violentado por alienígenas. Esta realidade soou como título de filme trash: “em cartaz: o homem estuprado por aliens”. Inexistia uma maneira menos vexatória de divulgar isso com os amigos caçadores, com Annece, com o mundo. Imaginemos Bloch a contar “Gente, tive o cú arrombado por seres de outro planeta!”. Além da incredulidade, sobrariam pilhérias e sacaneamentos. “Melhor guardar só pra mim”, ponderou.

– Bloch – vozearia dos caçadores que deram pela falta dele – que tu faz aí nesse chão, cara? E que sangue é esse? Tu tá ferido, sumano?

– Hã... É... Vim atrás de um porco do mato. Patetando, escorreguei e bati nesta pedra...
– Será necessária uma cirurgia para remoção, Sr. Bloch – Dr. Hipócrates manuscrevia um formulário – não entendo este tumor. Não consta registro de coisa igual na literatura médica. Não é câncer, já fizemos exames. É como se a própria carne tivesse tomado a decisão de avolumar.
– Por favor, doutor. Tire essa coisa da minha barriga! Quero meu físico de volta. Sinto saudade até mesmo da minha barriguinha de cerveja.

As palavras de Bloch causaram risos no Dr. Hipócrates. Este levantou da cadeira, e se dirigiu ao frigobar para pegar água. Calculava mentalmente a data para a operação.

– Aiiiiiiiiiiiii!

Bloch se esgoelando de dor, desaba ao chão. Contorce-se com fisgadas, melhor, facadas no olho do tumor. Dr. Hipócrates se apressa em socorrê-lo. Há um reviro no interior do tumor. Algo se esforça para perfurar a pele. Cada estocada é vista como a ponta de uma lança. O médico não sabe o que fazer. Tenta alcançar o telefone. Mas é encoberto por uma gosma negra, oriunda da esfera, que explodiu. Bloch está morto.

Dr. Hipócrates quer se limpar. A gosma se impregna. Invade-lhe olhos, boca, ouvidos, nariz, em um minuto, ceifa-o.

A gosma se amontoa. Erigi-se uma espécie de cone giratório. Desenha o formato humano. E este formato imita a feição de Bloch. Um clone exsurge da substância alienígena. Forma de vida inteligente, pois tratou de pôr em si as roupas do defunto.
Impôs as mãos sobre os restos mortais de ambos e os desintegrou.

– Bloch – Annece comentou na hora do jantar, observando o marido – você tá bem?
– Sim, terráquea...
– Pergunto por que desde que chegou não para de me chamar “terráquea”. Que foi? Virou extraterrestre? – ensaiou um riso, não sendo acompanhada, fechou a cara. Reclamaria da falta de modos do marido – tira a cabeça de dentro do prato!

Bloch, melhor, o alienígena, estava com a face inteira enfiada na sopa, ajeita o pescoço, e encara-a com um olhar oblíquo e dissimulado.

A história encerra aqui e assim. Este narrador pede desculpas a você, leitor, é consabido que sou limitado ao escritor; alforriado, convertendo-me numa abstração sem pele. Ele determinou o encerro. Tal quando você, encontro-me repleto de incógnitas. Por exemplo, o que pretende o alien fingindo ser Bloch? O filho da puta do escritor não quis me segredar. Verberou que um dia qualquer (dando na telha) conceberá uma continuação, ou não. É exótico, o cara! Bem, lanço-me à minha própria imaginação, a título de cogitação, e penso: a troca entre Bloch e o alien se deu como parte de um projeto maior, clichê, de subjugo da raça humana. Aliens estão se infiltrando em nosso meio. Um dia, proclamarão um extermínio. Fica mais fácil, já adaptados aos nossos cotidianos e destros no manuseio e bloqueio de nosso arsenal bélico. A priori, a moça violada era o único experimento do dia, mas Bloch achou de ir atrás da coruja... – quiçá, a coruja o tenha atraído.

Dou razão a Ellen Parr quando sentenciou “A cura para o tédio é a curiosidade. Não existe cura para a curiosidade”.
Sem cura, Bloch acabou com as pregas esfaceladas, a barriga escancarada, a vida substituída, e alienigenizado...
Eles existem, leitor, os ET’s, e habitam simulacros humanos. Qualquer um é suspeito de ser um alien... Inclusive tu, leitor...


[Após esta última frase, o narrador não foi mais visto. Em face do que, eu, o escritor, indago: terá sido abduzido por saber demais?]


[Findada a indagação acima, o escritor não foi mais visto]


Autoria: Franciorlys Viana

DO VENTRE {SAMANTHA DE SOUSA}




         Entrou no quarto e deitou-se vagarosamente na cama. Ainda doía por dentro. Era mais que uma dor física, era qualquer coisa que doía lá dentro. Sentia-se vazia. De repente uma lágrima começou a cair em sua face. Era o arrependimento. Não devia, mas já o havia feito. Não tinha volta. Haveria perdão? O quarto estava escuro. Estava sozinha. E o silêncio crescia cada vez mais, dentro e fora de si. A escuridão também crescia. Os olhos se fechavam.
         Alguém batia à porta. Despertou assustada. A dor parecia ter cessado. Permaneceu deitada. Alguém realmente a esperava? Bateram-lhe novamente à porta. Levantou-se ainda sonolenta e foi atender a quem a esperava. Viu que a porta que dava para a rua estava apenas entreaberta, uma sombra se movia por detrás da porta. Aproximou-se e um forte vento abriu a violentamente a porta. Não havia ninguém. A noite já estava caindo, viu pela porta aberta que o céu já escurecia. Com as mãos trêmulas do susto recolocou no lugar uma mecha de cabelo que caíra sobre seus olhos e fechou a porta. Tudo escureceu.  Respirou fundo e acendeu a lâmpada. Ouviu atrás de si alguém se aproximando. Virou-se: era uma criança. Uma criança despida, sem sexo e sem rosto. Andava em sua direção. Estava paralisada. Quando a criança a abraçou um grito crescia dentro de si, mas não conseguia gritá-lo. Todo o seu corpo estremecia. O ar fugia-lhe dos pulmões.
         Alguém batia à porta. Despertou desesperada. Conseguia respirar. A dor continuava, aguda. Tudo estava escuro, mas conseguiu ver a sua frente o seu próprio reflexo no espelho da parede. Alguém batia à porta. Levantou-se com um pouco de dificuldade e foi ver quem a esperava. A porta estava fechada. Cuidou de acender todas as luzes. De frente ao espelho da sala arrumou com as mãos os cabelos. Abriu finalmente a porta, não havia ninguém. Mas quando os olhos caíram sobre o chão sua dor se tornou mais aguda, quase insuportável. O que era aquilo? Era ainda um pesadelo? Era um pequeno monte de não-se-sabe-o-que, algo disforme, coberto de sangue. Quase desmaiou quando seus olhos olharam direto para os olhos da criatura, eram uns olhos negros, opacos. Caía e se contorcia, mas de dor.
         _ Lena?... Lena... acorde... _ Ouvia alguém chamar. Com a vista um pouco embaçada pôde vê-lo. Téo.  - Que houve? - ele perguntou.
         _ Eu... fiquei tonta e...
         _ Encontrei você desmaiada na porta. Você está sentindo alguma coisa? Não quer ir para o hospital?
         _ Não... não precisa - não podia falar o que vira. Não podia falar da dor que sentira. Apenas riu-se. Foi apenas um susto. - Já estou melhor.
         _ Então tá! Tenho que ir para a aula agora, qualquer coisa você me liga, ok?
         _ Tudo bem!
         _ Ah... tinha me esquecido! Deixaram isso aqui para você! Tem seus olhos! - Dizia balançando a sua frente uma boneca. Pousou-a sobre a mesa, beijou-lhe a testa e saiu.
         Lena ouvia os passos de Téo se distanciarem, até chegar à porta, abrí-la e sair. Estava sozinha novamente. Sentou-se na cama e seus olhos caíram novamente sobre os olhos. Os olhos da boneca. Era num estilo antigo, o corpo de pano e a cabeça e as mãos de porcelana, usava um vestidinho de renda branca e fazenda floral, usava também um chapeuzinho da mesma composição, tinha uns olhos negros grandes e sem brilho e uma boquinha minúscula de um rosa quase transparente. De um todo, até que era adorável. Mas havia qualquer coisa naquela boneca que não a deixava à vontade. Respirou fundo, levantou, pegou a boneca e a guardou numa gaveta. Viu novamente seu rosto refletido no espelho, precisava de um banho. Precisava relaxar. Precisava de luz. Acendeu todas as luzes e se dirigiu ao banheiro. Mirou-se no espelho do banheiro, mais iluminado que os demais. Estava mesmo com uma aparência cansada, seus olhos estavam opacos, como os olhos da boneca.
         Ligou o chuveiro e tentou esquecer de tudo o que lhe havia acontecido nas últimas horas. Sentia a água gelada escorrer por todo o seu corpo. O som da água caindo impedia-lhe até mesmo de ouvir seus próprios pensamentos. Voltou ao quarto e a primeira coisa que avistou foi a pequena boneca sentada sobre a mesa e olhando para si. Voltou ao banheiro, devia estar enlouquecendo. Voltou ao quarto e ela ainda estava lá. Podia jurar que a havia guardado. Mas talvez não o tivesse feito, talvez tivesse apenas pensado em fazê-lo. Apressadamente pegou a boneca e  guardou na gaveta. Quando o fez sabia que seria difícil, mas não imaginou que seria tão difícil, não contava com os pesadelos, estava enlouquecendo. Pensava. Talvez não estivesse preparada para tudo aquilo. Não podia falar para ninguém. Precisava sair. Caminhar sem direção. Precisava parar de pensar em tudo aquilo. Vestiu uma roupa qualquer e saiu.
         Enquanto caminhava o vento parecia-lhe mais frio, nuvens se formavam no céu escuro. Já estava um pouco distante de casa. A rua estava vazia, ao menos era o que lhe parecia. Teve a ligeira impressão de que alguém a seguia, olhou para trás e não viu ninguém, apenas as copas das árvores que o vento balançava. Continuou, agora em passos mais ligeiros. Um vulto se movendo entre as árvores a fez parar de repente. Olhou ao redor. Sentiu o coração apertar. A respiração estava pesada.
         _ Lena...
         Era uma voz estranha, não sabia de onde vinha, não sabia de quem era. Chamavam seu nome. Voltaria para casa. Deu a volta e começou a correr. Ouviu passos atrás de si como se alguém também corresse. Não havia ninguém. O coração acelerava. De repente tudo silenciou. Até o vento. Tudo paralisou. Até as árvores. Ela também parou. Sentia o coração pulsar. Podia ouví-lo. Fechou os olhos na esperança de se acalmar. Quando os abriu viu atravessar a rua uma criança vestida num um vestidinho de renda branca e fazenda floral. A criança parou no meio da estrada e ficou defronte dela. Não tinha rosto. Segurava uma boneca, igual àquela que fora deixada a sua porta. Os olhos negros olhavam para ela. Os mesmos olhos opacos.
         _ Mamãe...
         Simplesmente começou a correr em direção a sua casa. Correu sem parar. Mesmo cansada não parava de correr. Abriu a porta nervosa. Finalmente podia chorar. Ali mesmo, ajoelhada na porta já trancada por dentro. Olhou para o espelho da sala e viu refletida: a boneca. Correu para o quarto, abriu a gaveta. Ainda estava lá. Abriu a janela e a jogou o mais longe que podia. Trancou-se no banheiro, como que buscando um lugar seguro. Logo percebeu que o espelho do banheiro estava quebrado, e em cada pedaço podia ver seus olhos. Eram seus olhos mas não o eram, alguns eram seus olhos, outros eram os dela. Abriu o armário para não mais ter de olhar para o espelho quebrado, mas o que vira dentro do armário era talvez pior. A cabeça da boneca, ensangüentada, com aqueles olhos, vivos. Uns olhos negros e brilhantes, com lágrimas escorrendo. No mesmo momento um choro de criança ecoava aos seus ouvidos. Sentia também algo escorrendo por suas pernas. Era sangue. E a dor voltava. Rasgando-lhe por dentro. Começou a gritar, mais para não ouvir o choro da criança.
         Trêmula, abriu a porta do banheiro, estava tudo escuro. A sua frente, a criança sem rosto, não a da estrada, mas a do pesadelo. Lena já não aguentava a dor. Já não tinha forças, mas não conseguia desmaiar.
         _ Ela quer nascer... _ dizia a criança e começou a torcer o pescoço da boneca que estava em suas mãos, ao mesmo tempo algo se torcia dentro de Lena. E a dor aumentava. A criança pousou a boneca ao lado do rosto desfigurado de torror de Lena e desapareceu. Os olhos da boneca sangravam. Lena também sangrava. Lena olhava bem no fundo dos olhos da boneca e via a si mesmo ninando uma criança. Viu-se se aproximando e olhando para si do lado de fora, levantava para mostrar para si a criança: tinha um rosto alvo como a porcelana e uns olhos grandes e negros. A criança tinha uns olhos grandes e negros e olhava para a Lena do lado de fora.
         _ Perdão... _ Murmurava Lena.
         O brilho fugia dos olhos de Lena e penetravam nos olhos de quem estava do lado de dentro dos olhos da boneca. Enquanto Lena murmurava “perdão”, a criança a chamava incessantemente “mamãe”.
         Quando Téo voltava para casa pode ver ainda Lena caminhando em direção ao lago carregando uma manta branca. Correu para alcançá-la. Viu-a se atirar nas águas, tentou salvá-la, mas era como se ninguém estivesse por lá. Voltou para casa. Encontrou o corpo de Lena estendido no banheiro, ensanguentado. Sentada ao seu lado, com um sorriso ingênuo estava a boneca, que parecia olhar e sorrir para ele.

CÃES DA MADRUGADA {GIROTTO BRITO}




Já estava quase pegando no sono quando os cães começaram a latir freneticamente. Por alguns segundos procurei não me preocupar. Apesar de morar sozinho e o quintal ser grande, escuro e tomado por uma vegetação alta, os quatro cachorros sempre cuidaram bem dos arredores da casa e espantavam qualquer ameaça. Naquela noite, no entanto, os latidos duraram pouco tempo e deram espaço para gemidos caninos e um súbito silêncio, quebrado apenas pela forte chuva e o uivar do vento entre as frestas do telhado.
Quis abrir a janela, o suficiente para tentar enxergar o que havia feito meus cães silenciarem, mas achei melhor não. As portas e janelas eram bem protegidas com grades de ferro e seria mais seguro deixá-las bem trancadas com seus vários cadeados. Não deve ter sido nada — pensei, e voltei a encostar a cabeça no travesseiro. Tentando mudar o rumo dos pensamentos sombrios que se formavam dentro de mim, fechei os olhos e procurei me concentrar no tic-tac do relógio de pulso. As luzes estavam apagadas e só a luz longínqua de um poste da rua adentrava pela vidraça da janela, fazendo desenhar as sombras trêmulas da grade na parede do quarto.  O edredom cobria meu corpo, mas não me aqueciam os pés, gélidos mais de medo do que de frio.
Tateei a superfície do criado-mudo à procura do celular, mas não o encontrei. Na escrivaninha — lembrei, e levantei para pegá-lo. Era 1h28 da madrugada, mas não foi para ver as horas que peguei o aparelho. Queria mesmo era tê-lo por perto, mas acabara de perceber que seria inútil: estava sem sinal! De qualquer forma levei-o para a cama junto comigo.
Vez ou outra imaginava ter ouvido algum barulho estranho no quintal, mas acabava por me convencer que era apenas o temporal que derrubara algum objeto na varanda. Alguns minutos se passaram e já estava para adormecer quando, num olhar de relance, percebi que havia alguma coisa a mais na sombra projetada na parede. Estremeci por inteiro com o susto repentino que fez meu coração palpitar aceleradamente. Nesse mesmo instante, a sombra se moveu e não ficou mais visível, e pude ouvir o som dos passos próximos à parede. Passos lentos, meio arrastados. Mas passos, com certeza!
Procurei me acalmar. Se ao menos eu tivesse uma arma — pensei. Os passos se dirigiam à porta da frente. Olhei o celular: ainda sem sinal. Levantei da cama e fui para a cozinha, esgueirando-me cegamente entre os móveis para que não fosse notado. Peguei uma faca na gaveta do armário e procurei o interruptor da lâmpada da varanda.
— Merda de energia! — sussurrei ao perceber que as lâmpadas não acendiam.
À princípio achei que a falta de energia se devia à tempestade que podia ter danificado a rede elétrica, mas logo lembrei da luz do poste que fazia clarear parte do quarto e comecei a suspeitar que o invasor é que havia cortado algum fio externo e provocado o apagão.
Ouvi novamente um barulho. Dessa vez na porta da frente. Espiei da sala e pude ver a silhueta desenhada na porta de vidro. Era um sujeito grande, aparentemente forte e usava possivelmente um Sobretudo que lhe protegia da chuva. Averiguava os cadeados com calma, como se não se preocupasse com quaisquer ameaças que pudesse interferir em seus planos.
Eu estava só, sem nenhum meio de comunicação e trancado dentro da minha própria casa. Meus cães, que sempre me garantiram a segurança, se calaram inexplicavelmente. Só me restavam as grades e cadeados. Uma situação desesperadora que fazia crescer em mim um medo paralisante.
Voltei a olhar para a porta, ele já não estava mais lá. Caminhava para a porta dos fundos, lentamente, arrastando passos e alguma coisa a mais que era impossível distinguir naquele momento. Recuperei os movimentos e fui até a área de serviço. Não era possível enxergá-lo dessa vez, mas pelo barulho eu presumi que estava fazendo a mesma avaliação dos cadeados que fizera na porta da frente. Ele vai tentar entrar — pensei. Meus ossos tremiam e mal conseguia empunhar a faca que pegara na cozinha. Faca esta que eu sabia que não me seria útil em nada, a não ser para trazer uma insignificante sensação de possibilidade de defesa.
Com a esperança de conseguir afugentá-lo, comecei a proferir insultos e ameaças. “Vai embora seu infame! Já chamei a polícia e logo estarão aqui.”, gritei duas ou três vezes, e depois tudo silenciou. Apurei os ouvidos durante algum tempo, mas nada de cadeados esfregando na grade, nem passos arrastados, só o tilintar da chuva no telhado e o uivar do vento. Meu coração começou a desacelerar e a boca seca de repente voltara a salivar. Os músculos foram relaxando e já pensava em comemorar a bem sucedida atitude de intimidação. Mas não, um estrondo assustador soou repentinamente da grade da porta da frente. Ferro contra ferro! Corri para a sala. A sombra no vidro da porta mostrava o homem com uma marreta golpeando os cadeados freneticamente. Eram cadeados grandes, mas eu sabia que não iam aguentar por muito mais tempo. Os vidros da porta quebraram e lancei-me instintivamente no chão do corredor para não ser visto.
O vento frio entrou pela vidraça quebrada e fez estremecer mais ainda minha carne. Vou fugir pelos fundos — pensei. Mas logo lembrei que as chaves da casa estavam próximas da porta de entrada. Não havia como pegá-las e por sorte o invasor ainda não as tinha visto.
A casa era pequena. Possuía apenas dois quartos, sala, cozinha, banheiro e uma área de serviço interna. A única forma de sair dali naquele momento era pela porta da frente, mas para isso eu teria que passar pelo homem e sua marreta. O pânico não me deixava raciocinar organizadamente e meus pensamentos se misturavam num turbilhão de ideias e medos cada vez mais aterrorizantes. Um cadeado já havia se rompido, restava o outro e a porta.
Respirei fundo e corri para o quarto de hóspedes. Tranquei a porta por fora e retirei a chave. Fiz a mesma coisa com o banheiro e meu quarto. Todos trancados por fora para dar a impressão de que eu estava me escondendo em algum deles. Fui então para a cozinha e me joguei no vão entre a parede e a geladeira. Ouvi o segundo cadeado cair e a porta ser arrombada. Ele estava entrando! Apoiei a faca firmemente com as duas mãos e percebi que estava sangrando. Havia me cortado, provavelmente quando caí no corredor. Ofegava e tratei de prender ligeiro a respiração, antes que ele pudesse me ouvir.
Seus passos lentos foram adentrando a sala, arrastando a marreta ao piso molhado pelos respingos de chuva que entravam junto a ele. Não podia vê-lo, mas podia senti-lo. O homem parou na entrada do corredor, como quem estivesse observando e decidindo a melhor forma de me encontrar e estourar minha cabeça com aquela marreta. Eu já não conseguia mais prender a respiração e voltei a ofegar, dessa vez mais silenciosamente.
Os passos foram se aproximando e meu corpo paralisou. Escondi-me no lugar errado — pensei. As mãos mal aguentavam o peso da faca, tamanho era o incontrole que tinha sobre meu corpo. A sombra larga e indefinida apareceu aos meus olhos, deslizando no piso da cozinha. De repente ele parou. Parecia observar atentamente, mas não prosseguiu. Dirigiu-se até a porta do banheiro e girou a maçaneta. Depois fez a mesma coisa com as maçanetas das portas dos quartos. Todas trancadas.
Eu ainda não poderia tentar fugir. Seria pego, com certeza. Arrisquei espiar por trás da geladeira. Ele olhava fixamente para a porta do quarto de hóspedes. Usava realmente um sobretudo escuro que escorria a água da chuva trazida de fora. Um capuz cobria-lhe a cabeça e a mão esquerda segurava uma pesada marreta, dessas de quebrar concreto.
O invasor deu dois passos para trás e disferiu um forte chute na porta. Não foi o suficiente. Ele então acertou outros três pontapés e a porta não resistiu, escancarou-se completamente deixando visível o cômodo sem móveis, com apenas algumas caixas empilhadas num canto. Não havia necessidade de ele entrar no quarto para saber que eu não estava lá e voltou-se para a porta do banheiro. Acertou uma marretada na maçaneta e logo em seguida um chute e a porta também se abriu. De onde estava pôde ver que eu não me encontraria lá e foi para a terceira porta, a do meu quarto. Estava cansado, podia-se notar pela respiração, mas não hesitou e marretou a porta até vê-la inteiramente aberta. Nesse quarto havia vários móveis e ele foi entrando cautelosamente para me procurar.
Era a minha oportunidade de escapar. O corredor estava vazio e eu, sabendo que o homem havia entrado no quarto, disparei em direção à porta da sala. Minhas pernas, trêmulas, não respondiam aos meus estímulos como em outras situações. Cambaleei e escorreguei em meu próprio sangue deixado no piso do corredor.
Desesperado e desnorteado, fui levantando e procurando a direção da saída, quando vi a marreta passar zunindo por meu ouvido e estourar o reboco da parede ao meu lado. Fui patinando no piso molhado da sala e desviando — sabe Deus como — das marretadas disferidas pelo intruso que tentava inexplicavelmente estourar meu crânio. Num daqueles reflexos animais que só conhecemos quando precisamos lutar com todas as forças pela sobrevivência, eu consegui passar pela porta e empurrar a grade sobre ele, atrasando-o.
Corri sob a forte tempestade rumo ao portão. No caminho, encontrei os meus quatro cães, todos com suas cabeças quebradas e seus miolos sendo levados pela água da chuva. Corri sem parar, com todas as minhas forças, até chegar tomar distância e coragem suficiente para olhar para trás. Vi-o caminhando em outra direção. Havia desistido de mim, mas arrastava pelas coleiras os corpos deformados de meus três cães e, com eles, desapareceu na mata escura e molhada que circundava a casa. A casa em que jamais voltei.


OS RATOS {ELIAS ABNER}



Éramos ratos. Digo “éramos”, pois não sei mais o que sou hoje, e quando me perguntam se sou um homem ou um rato estanco, sempre, não sei o que responder. Naquele tempo sabia. Aliás, naquele tempo não me preocupava com esse tipo de situação, essas crises que te forçam a pensar em coisas das quais não possuis uma resposta pronta e clara, definida, assim. Éramos ratos, e só. E “só” queria dizer que levávamos uma vida normal para a espécie: corríamos pelos esgotos, revirávamos montes de lixo à procura de comida... Comíamos tudo o que aparecesse, vivo ou morto, ou podre, não fazia diferença, contanto que não morrêssemos de fome.
Nesse tempo, nosso lugar preferido era o cemitério. Ficava lá pros lados da Cidade Antiga, aquele bairro cheio de casarões velhos, com gente velha dentro cheirando a naftalina, um odor característico que parece pairar entre dois mundos: dos vivos e dos mortos. Pois era naquele cemitério em que nos reuníamos aos bandos. Proliferávamos à vontade. Corríamos pra todos os lados sem nos preocupar com o coveiro, um homem extremamente magro que vivia preocupado demais em depenar os cadáveres à procura de objetos de valor ou de ossos para vender sabe-se lá pra quem e pra quê. Às vezes o espreitávamos por entre as lápides. Nossos focinhos peludos cheirando o ar cadavérico. Quando nos via estreitava os olhos e rangia os dentes, como se fôssemos concorrentes em potencial. Mas não éramos, e ele sabia disso. Cada um procurava aquilo que o satisfazia: ele, os objetos de valor; nós, a carne fresca, com o sangue, às vezes, ainda quente. Quando ele se fartava, devolvia o caixão à cova, voltava a jogar a terra por cima. Às vezes quando estava de bom humor (e isso queria dizer quando encontrava alguma coisa de valor, um dente de outro, um anel...) deixava um buraco profundo para que pudéssemos entrar sem dificuldade e fazer a nossa parte... Então entrávamos. Centenas de nós. Cada um afoito pra pegar a melhor parte, pois nunca se sabia quando viria o próximo. Em cidadezinha assim custava-se a morrer. Então aproveitávamos. Mas nunca era o suficiente, não pra centenas de nós. Sempre tínhamos fome. Sempre! Então íamos embora: revirar o lixo, o esgoto, à procura de qualquer coisa que fosse comestível (ou não). Ou apenas íamos perambular pelas ruas na madrugada. Vez ou outra invadíamos um armazém. Mas era difícil, perigoso. Havia sempre os cachorros. Muitos de nós morreram assim, estraçalhados pelos dentes afiados de um rottweiler qualquer. Eu mesmo, uma vez, quase virei refeição. Enfiei-me num cano de esgoto no último segundo, não sem antes perder quase a metade da calda. Mas isso não vem ao caso.
Éramos ratos, e fazia parte de nossa natureza, assim como faz parte da natureza de todo respirante, perder uma calda, um braço, uma perna: morrer.
Doía morrer?
Nunca havia me perguntado isso. Até aquela noite. Eram tempos extremamente difíceis. Chovia muito e a comida estava bastante escassa. Tudo estava raro, até mesmo morrer... Mas naquela tarde veio a notícia: haveria um enterro! A notícia se espalhou rapidamente. Foi uma algazarra entre a ratazada. E antes que o cortejo chegasse ao cemitério já estávamos à espreita, de longe, olhando pelas rachaduras das lápides e catacumbas. Os focinhos farejando o ar. Os dentes afiados urgindo por morder e estraçalhar a farta refeição. Quase conseguíamos sentir o gosto...
O sol já estava quase se pondo quando o cortejo chegou. “Infarto”, ouvíamos as pessoas comentando. “Era um bom homem, que Deus o tenha”, “Vai fazer muita falta...”. Não ligávamos para o que fora, para o que era ou se iria fazer falta ou não. Nada disso importava. Só queríamos mesmo... comer! A natureza era assim, desde sempre. Uns morriam pra outros viverem. O capim morria, o boi vivia, o boi morria, o homem vivia, o homem morria e nós vivíamos... Simples.
Doía morrer?
O padre leu algumas palavras. Todos choraram mais ainda. A viúva, extremamente gorda, estava inconsolável, “Ele estava tão bem! Tão bem! Foi assim, de repente!” e caiu em prantos. Uns balançavam a cabeça. Outros assoavam o nariz. Nós esperávamos.
Antes de descerem o caixão à cova abriram a tampa pela última vez para uma última despedida. Isso quase sempre acontecia. O conteúdo revelou um homem grande, gordo, as faces extremamente rosadas, coisa que eu nunca tinha visto num cadáver. Ele parecia ser sido um homem de posses, pois vestia um termo preto elegante e ostentava na mão esquerda uma grossa aliança de ouro. Os olhos do coveiro faiscaram por um segundo. Era hora de descer. Tamparam o caixão. Depois jogaram flores por cima. E desceram, lentamente, para desespero dos quatro rapazotes que seguravam as cordas, enquanto os demais entoavam cânticos misturados com choros e soluços.
Assim que o caixão chegou ao fundo da cova a viúva desmaiou. Alguém a acudiu enquanto outros jogavam terra para cobrir a cova. Não ligávamos para o que estava acontecendo. Faltava muito pouco para o nosso banquete. Famintos como estávamos, seríamos os primeiros dessa vez. O coveiro que se apressasse para cavar!
Depois que cobriram completamente a cova, todos foram embora, arrastando os passos. Já anoitecia e começava a cair uma chuva leve. Era a nossa hora. Então corremos.
Centenas de nós, saídos de todos os cantos, convergiram para a cova recém-fechada. Era questão de sobrevivência. Os que chegassem por último talvez não conseguissem comer nada e morreriam. Corri o mais depressa que pude, como da vez que fugi do rottweiler. Uns corriam do meu lado, outros, ávidos, embolavam-se em brigas por um lugar à fila e acabavam ficando para trás. Ninguém desistia, no entanto. Ouvi passos apressados: o coveiro estava rondando o local, provavelmente se perguntando se já podia fazer o seu “serviço”. Não ligamos. Começamos a cavar a terra, nossas garras ágeis jogando areia para os lados, formando túneis em direção ao esquife. Tínhamos que ser rápidos, antes que a água as chuva inundasse tudo, ou antes que o coveiro chegasse ao morto. Nisso ouvimos um baque surdo e um gemido distante. Era provável que o coveiro estivesse começado a cavar. Teríamos que nos apressar. Então nos apressamos. E quanto mais cavávamos, quanto mais nos aproximávamos do caixão, mais alto ficava o baque, mais alto os gemidos. Agora pareciam vozes, ou melhor, sussurros. Seria do coveiro? Cavávamos, cavávamos, cavávamos! Rápidos! Famintos! Os baques mais fortes, os gemidos mais fortes, a voz sussurrante agora chorava, chamava por socorro.
Dói morrer?
Não, essa não é uma pergunta retórica, filosófica.
Chegamos à caixa de madeira cheirando a verniz. Para meu espanto, era de lá que vinha aquele barulho e aquela voz. Num lugar acima de nós outro barulho indicava que a terra estava sendo revolvida apressadamente. Ali em baixo, a água infiltrava-se pelos túneis abertos por nós. Tínhamos que ser mais rápidos. Restava romper a madeira. Começamos a roer. Roemos, roemos, roemos. Rápidos! Famintos! De dentro do caixão as batidas continuavam fortes, cada vez mais rápidas, a voz abafada, terrivelmente desesperada. Mas era a lei da natureza: uns morriam pra outros viverem, desde sempre. Doía morrer? Perguntei-me naquele momento quando conseguimos romper a madeira. Um cheiro forte de flores se misturou ao de lama e terra molhada. Enfiei a cabeça pela abertura. A coisa ali dentro se debatia e gritava desesperada por socorro. Em pouco tempo o coveiro iria chegar até o caixão. Em pouco tempo ele poderia salvar o homem, ou poderia matá-lo de vez, terminar o que, para todos, já havia terminado. Alguém iria saber? Mas essa era apenas uma possibilidade, ninguém saberia dizer. Ele poderia salvar o homem e depois ser recompensado de alguma forma. Mas então morreríamos de fome. Restava pouco tempo. Era ele ou nós. Era a natureza nos dando a chance de viver. Ainda lembro-me do grito que o homem deu quando cravei a primeira mordida na carne farta do seu braço. Ele gritou por um tempo, se debateu, lutou; mas era quase impossível se mexer ali dentro, quase não coube uma centena de nós... Depois ele finalmente se calou. A aliança, consegui arrancar junto com o dedo gordo enquanto o coveiro lutava para abrir a tampa do caixão. E ainda tive tempo ouvir, já chegando do outro lado do cemitério com o dedo entre os dentes, o coveiro gritar e disparar maldições. Depois não me lembro de nada. É como se fosse uma lembrança nebulosa, como as lembranças do tempo que se passa dentro do ventre materno, ou os primeiros anos da infância, ou seja: uma lembrança que não é verdadeiramente lembrança, porque tu não lembras, mas que tu sabes que existe, ou que em algum lugar existiu. A última lembrança que tenho é do coveiro gritando as maldições. Se alguma delas funcionou, não sei dizer, por mais que tenha motivos suficientes para desconfiar. Talvez descubra um dia, quando morrer. Por enquanto continuo vivo, bem vivo. E ainda guardo a aliança de ouro no dedo que, como mamãe me contou, encontrei no quintal de casa enquanto brincava de escavar a terra à procura de tesouros roubados.



O HABITANTE {SAMANTHA DE SOUSA}


         A tarde descia leve e brilhante. Gostava de fins de tarde assim, iluminados e tranquilos.  Acostumara-se a sentar-se naquele horário à porta de sua casa com  uma xícara de chá quente acompanhada do velho Nietzsche, era quase um ritual, o chá e o livro traziam a noite. Suas noites costumavam ser tranquilas, com uma boa música, pés enfiados em meias, distrações esporádicas. Era, de um todo, uma pessoa extremamente calma. Talvez seja até mesmo estranho e angustiante aos demais imaginar como uma pessoa como ela pudesse se tornar o que ela se tornara, mais difícil ainda é compreender a razão que a levou a tal estado. Não se pode falar de  impossibilidades, pouco se sabe do que possibilitou tal situação, entretanto, nada se sabe do que a impossibilitaria. Talvez até fosse possível premeditar o que viria adiante, mas seria inútil, seria divagar infinitamente e não chegar a conclusão alguma, passos vãos.


         O que lhe aconteceu não tem exatamente um ponto inicial, poder-se-ia dizer até que mal o tumor lhe aparecera já viera à furo. Há, talvez, um ponto de  agravamento que se passou justamente numa dessas tardes em que esquecia de si sentada à porta. Esquecia-se de si, e parece que a partir daquele momento também  começara a se abandonar, ou a se perder.


         A tarde já se despedia, a xícara vazia pousada no chão, o livro também já se fechando, o silêncio tomava conta daquele instante. Gostava de aproveitar momentos assim, até porque só os tivera quando finalmente pode morar sozinha. Levantou-se. Juntou tudo do chão, colocou a xícara na pia e levou o livro para o quarto, e nesse pequeno intervalo é que lhe veio a primeira de uma série de estranhas sensações. Jogou o livro na cama e apertou-lhe por dentro um desespero insólito, a impressão de  que alguém entrava na casa. Correu à porta, que ainda estava aberta, observou algum instante, não havia ninguém. Acendeu a luz e trancou a porta à chave. Pouco a  pouco foi recuperando a calma.


         Tal sensação não era de um todo desconhecida por ela, já a sentira outras vezes, mas há muito tempo, quando ainda era criança, mas era um medo infantil,  aquele medo de levantar-se sozinha no escuro ou de ouvir sons estranhos que não se sabe se era na rua ou de dentro de casa. Tinha sido uma criança medrosa. Mas ela não  era mais uma criança, aliás, conseguira um tal controle que parecia ter superado grande parte de seus medos ingênuos e irreais. Por que essa sensação agora? Um banho,  roupa limpa, comida quente, isso bastaria para esquecer aquilo. Por pouco tempo. Não demoraria muito pra vir uma sensação mais forte e aterradora. Deitada e de luzes apagadas, como sempre fazia, preparava-se para dormir, ficara até tarde mergulhada em um completo nada. Fechou os olhos, e como se dependesse disso, no mesmo instante  ouviu a porta do quarto se abrindo e sentiu que alguém se deitava na cama, sentiu apenas um peso baixando ao seu lado. Levantou-se de súbito e acendeu a luz, não  havia nada, não havia ninguém, a porta ainda estava fechada. Talvez tivesse sido um pesadelo, efeito da impressão de mais cedo que ainda se mantinha. Procurou justificativas, explicações, mas nada lhe devolveria a calma naquela noite. Não conseguiu dormir. Amanheceu completamente atordoada.


         Durante o dia, sentiu na boca o gosto amargo da noite anterior. Seus olhos pesavam, o corpo pesava, não era apenas sono, parecia estar doente. Passou o dia inteiro deitada, tentando dormir, talvez tenha conseguido alguns minutos de descanso, mas parecia sempre lúcida. Sempre aquela sensação de que alguém tinha entrado em sua casa e que lá ainda estivesse. Atravessaria mais uma noite em claro. Buscou livros, contos, poemas, precisava se manter distante. No dia seguinte, seu corpo já não aguentava mais o cansaço, acabou por adormecer, dormiu o dia inteiro e a  noite seguinte também. Foi um sono pesado, porém tranquilo. Parecia se recuperar. Durante  todo o resto da semana conseguiu seguir sua rotina, exceto por um ou outro pesadelo mal lembrado pela manhã.


         Tentava não se preocupar com isso, não havia motivos para se impressionar. Não havia. Lembrou-se de quando era criança, de quando tinha assistido um desses filmes sobre fantasmas amaldiçoados, parecia tão real quando eles iam visitá-la durante os sonhos, ria ao lembrar disso. Fantasmas não existiam, apenas os fantasmas do seu passado. Costumava ter medo de filmes de terror, tanto que acabara tomando gosto pelo gênero. Sim, era engraçado tudo aquilo, mais engraçado ainda era reviver os medos de infância. O chá esfriava na xícara enquanto ela mergulhava em tantos pensamentos, não servia mais para consumo. Precisava sair, respirar um pouco. Mas ao entrar no quarto, diante do espelho, viu o pesadelo recomeçar: não era ela que estava refletida. Aquela imagem cortou-lhe como um grito rouco de pavor, sentiu uma  forte tontura tomar conta de seu corpo e  uma dor perfurando sua cabeça, era como sentir a própria morte de perto. Caiu trêmula no chão, suava frio. Sentiu novamente aquela presença, aproximava-se aos poucos, andava devagar, passos pesados, podia ouvir. Ouvia sua respiração, era abafada, cansada. Sentiu-a mais próxima de seu corpo, não a tocava, mas podia sentir seus dedos compridos muito perto de sua pele, como se quisessem rasgá-la. O coração batia tão forte que doía, tudo girava, tudo  escureceu de súbito. Tudo apagou.


         Sentia seu corpo imóvel, dormente, como se não fosse seu, como se não estivesse lá dentro. Os olhos não abriam, qualquer esforço seria inútil. Parecia adormecida, talvez morta, de qualquer maneira, não queria acordar. Sentia paz. Queria permanecer ali, aonde quer que fosse. Distante. Mas, de onde vinha esse desejo? Nunca o tivera antes, nunca pensara em morrer. Mas era tão bom estar morta. Acordou sufocada, como quem desperta de um afogamento, puxava o ar com toda a força, mas nada entrava. Aos poucos voltou a sentir novamente seu corpo, suas mãos, seus pés, enxergava. Permaneceu ainda deitada no chão por algum tempo, tentava compreender, mas tudo o que lhe acontecera escapava da memória como água  escorrendo. Permaneceu ali deitada vendo o tempo passar, sem vontade alguma de se levantar ou se mover.


         Dois dias se seguiram desde a estranha experiência. Guardou aquilo para si. E guardou também uma dor que crescia lentamente dentro do seu corpo. Parecia estar sendo invadida, habitada por alguma coisa. Esses dois dias se seguiram não menos pavorosos, nada relevante aconteceu, mas havia perdido completamente sua paz, perdera o sono, perdera a fome. Na faculdade os colegas estranharam sua desatenção, seu olhar vago, seus passos pesados. Sentia-se muito fraca para o convívio público, mas agora que estava fora de casa, sentia medo de voltar. E se quando abrisse a porta ele estivesse lá? Mesmo estar parada em frente a sua porta ainda trancada era assustador.


         Girou a chave. O coração palpitava forte. Sua mão tremia, não sabia se de medo ou de fraqueza. Abriu a porta e esperou. Esperou por cerca de meia hora. Ficou ali parada, olhando para dentro da casa escura, procurando um movimento, um som, uma forma, mas nada, a casa estava vazia. Entrou e acendeu as luzes. Deitou na cama, seu corpo estava todo dolorido, sentia cada músculo vibrar ao recostar-se no colchão. Queria dormir, mas dormir para sempre. Aquela sensação de ter algo dentro dela persistia, e aumentava a cada instante, tornou-se náusea. De súbito, seu corpo sem forças ergueu-se como num espasmo, tentava expulsar aquilo de dentro dela. Quase caindo no chão, vomitava sangue, um sangue morto, talhado e escuro. Gritava desesperada, era a primeira vez que conseguira realmente gritar ,gritava ainda mais porque não era a sua voz que ouvia naquele grito. Aquela voz parece que vinha do inferno. Ela se contorcia de dor.


         Novamente pode ouvir os passos se aproximando, e não era de apenas um, eram vários, e ela continuava gritando, como que chamando todos eles. O sangue ia se espalhando pelo chão, seu corpo esfriava, sentiu as pernas moverem-se sozinhas, enrolavam-se, não conseguia controlar. Olhou para o espelho e viu. Era horrendo. A criatura se apropriara de seu corpo. Estavam lá, as duas almas, habitando o mesmo corpo. Ela podia ver através daqueles olhos que não eram mais seus. Sentiu os ossos estalando, pareciam se partir. A criatura olhava para ela e ria, gargalhava como o próprio diabo. Sentiu que vomitaria novamente, e mais sangue se espalhava no quarto. Sentiu o cheiro da morte e uma imensa vontade de rir também,  mas seu rosto estava rígido como pedra, e as feições deformadas.


         Alguém batia freneticamente a sua porta. Chamavam-lhe o nome. Como se abandonasse seu corpo, perdeu rapidamente a rigidez e desfaleceu, mas permaneceu consciente, a porta se abrira violentamente. Ouvia vozes, não as mesmas de antes. Alguém tocava nela. Alguém a tocava, sentia nojo daquilo, ali dentro os anos se diluiam, não havia presente ou passado. Os dedos do demônio eram compridos, afiados, rasgavam sua carne de dentro para fora, o demônio a habitava e não iria embora. Ele sussurrava, ele sentia raiva, ódio. Ela se perdia dentro de si, em silêncio.


***


         Médicos, tratamentos, nada parecia fazer efeito, nada a fez voltar. Ninguém sabia explicar o que acontecera. Repousava tranquilamente em seu leito, nunca ninguém presenciou uma crise sua, até porque nunca as tiveras em público nem nunca mais as tivera. Dormia e acordava regularmente, mas não se movia, mal se podia sentir sua respiração, não aparentava consciência, carrega apenas um olhar vazio, que não olhava. Não via  mais o lá fora, não pertencia mais a ele. Estava condenada.