CÃES DA MADRUGADA {GIROTTO BRITO}




Já estava quase pegando no sono quando os cães começaram a latir freneticamente. Por alguns segundos procurei não me preocupar. Apesar de morar sozinho e o quintal ser grande, escuro e tomado por uma vegetação alta, os quatro cachorros sempre cuidaram bem dos arredores da casa e espantavam qualquer ameaça. Naquela noite, no entanto, os latidos duraram pouco tempo e deram espaço para gemidos caninos e um súbito silêncio, quebrado apenas pela forte chuva e o uivar do vento entre as frestas do telhado.
Quis abrir a janela, o suficiente para tentar enxergar o que havia feito meus cães silenciarem, mas achei melhor não. As portas e janelas eram bem protegidas com grades de ferro e seria mais seguro deixá-las bem trancadas com seus vários cadeados. Não deve ter sido nada — pensei, e voltei a encostar a cabeça no travesseiro. Tentando mudar o rumo dos pensamentos sombrios que se formavam dentro de mim, fechei os olhos e procurei me concentrar no tic-tac do relógio de pulso. As luzes estavam apagadas e só a luz longínqua de um poste da rua adentrava pela vidraça da janela, fazendo desenhar as sombras trêmulas da grade na parede do quarto.  O edredom cobria meu corpo, mas não me aqueciam os pés, gélidos mais de medo do que de frio.
Tateei a superfície do criado-mudo à procura do celular, mas não o encontrei. Na escrivaninha — lembrei, e levantei para pegá-lo. Era 1h28 da madrugada, mas não foi para ver as horas que peguei o aparelho. Queria mesmo era tê-lo por perto, mas acabara de perceber que seria inútil: estava sem sinal! De qualquer forma levei-o para a cama junto comigo.
Vez ou outra imaginava ter ouvido algum barulho estranho no quintal, mas acabava por me convencer que era apenas o temporal que derrubara algum objeto na varanda. Alguns minutos se passaram e já estava para adormecer quando, num olhar de relance, percebi que havia alguma coisa a mais na sombra projetada na parede. Estremeci por inteiro com o susto repentino que fez meu coração palpitar aceleradamente. Nesse mesmo instante, a sombra se moveu e não ficou mais visível, e pude ouvir o som dos passos próximos à parede. Passos lentos, meio arrastados. Mas passos, com certeza!
Procurei me acalmar. Se ao menos eu tivesse uma arma — pensei. Os passos se dirigiam à porta da frente. Olhei o celular: ainda sem sinal. Levantei da cama e fui para a cozinha, esgueirando-me cegamente entre os móveis para que não fosse notado. Peguei uma faca na gaveta do armário e procurei o interruptor da lâmpada da varanda.
— Merda de energia! — sussurrei ao perceber que as lâmpadas não acendiam.
À princípio achei que a falta de energia se devia à tempestade que podia ter danificado a rede elétrica, mas logo lembrei da luz do poste que fazia clarear parte do quarto e comecei a suspeitar que o invasor é que havia cortado algum fio externo e provocado o apagão.
Ouvi novamente um barulho. Dessa vez na porta da frente. Espiei da sala e pude ver a silhueta desenhada na porta de vidro. Era um sujeito grande, aparentemente forte e usava possivelmente um Sobretudo que lhe protegia da chuva. Averiguava os cadeados com calma, como se não se preocupasse com quaisquer ameaças que pudesse interferir em seus planos.
Eu estava só, sem nenhum meio de comunicação e trancado dentro da minha própria casa. Meus cães, que sempre me garantiram a segurança, se calaram inexplicavelmente. Só me restavam as grades e cadeados. Uma situação desesperadora que fazia crescer em mim um medo paralisante.
Voltei a olhar para a porta, ele já não estava mais lá. Caminhava para a porta dos fundos, lentamente, arrastando passos e alguma coisa a mais que era impossível distinguir naquele momento. Recuperei os movimentos e fui até a área de serviço. Não era possível enxergá-lo dessa vez, mas pelo barulho eu presumi que estava fazendo a mesma avaliação dos cadeados que fizera na porta da frente. Ele vai tentar entrar — pensei. Meus ossos tremiam e mal conseguia empunhar a faca que pegara na cozinha. Faca esta que eu sabia que não me seria útil em nada, a não ser para trazer uma insignificante sensação de possibilidade de defesa.
Com a esperança de conseguir afugentá-lo, comecei a proferir insultos e ameaças. “Vai embora seu infame! Já chamei a polícia e logo estarão aqui.”, gritei duas ou três vezes, e depois tudo silenciou. Apurei os ouvidos durante algum tempo, mas nada de cadeados esfregando na grade, nem passos arrastados, só o tilintar da chuva no telhado e o uivar do vento. Meu coração começou a desacelerar e a boca seca de repente voltara a salivar. Os músculos foram relaxando e já pensava em comemorar a bem sucedida atitude de intimidação. Mas não, um estrondo assustador soou repentinamente da grade da porta da frente. Ferro contra ferro! Corri para a sala. A sombra no vidro da porta mostrava o homem com uma marreta golpeando os cadeados freneticamente. Eram cadeados grandes, mas eu sabia que não iam aguentar por muito mais tempo. Os vidros da porta quebraram e lancei-me instintivamente no chão do corredor para não ser visto.
O vento frio entrou pela vidraça quebrada e fez estremecer mais ainda minha carne. Vou fugir pelos fundos — pensei. Mas logo lembrei que as chaves da casa estavam próximas da porta de entrada. Não havia como pegá-las e por sorte o invasor ainda não as tinha visto.
A casa era pequena. Possuía apenas dois quartos, sala, cozinha, banheiro e uma área de serviço interna. A única forma de sair dali naquele momento era pela porta da frente, mas para isso eu teria que passar pelo homem e sua marreta. O pânico não me deixava raciocinar organizadamente e meus pensamentos se misturavam num turbilhão de ideias e medos cada vez mais aterrorizantes. Um cadeado já havia se rompido, restava o outro e a porta.
Respirei fundo e corri para o quarto de hóspedes. Tranquei a porta por fora e retirei a chave. Fiz a mesma coisa com o banheiro e meu quarto. Todos trancados por fora para dar a impressão de que eu estava me escondendo em algum deles. Fui então para a cozinha e me joguei no vão entre a parede e a geladeira. Ouvi o segundo cadeado cair e a porta ser arrombada. Ele estava entrando! Apoiei a faca firmemente com as duas mãos e percebi que estava sangrando. Havia me cortado, provavelmente quando caí no corredor. Ofegava e tratei de prender ligeiro a respiração, antes que ele pudesse me ouvir.
Seus passos lentos foram adentrando a sala, arrastando a marreta ao piso molhado pelos respingos de chuva que entravam junto a ele. Não podia vê-lo, mas podia senti-lo. O homem parou na entrada do corredor, como quem estivesse observando e decidindo a melhor forma de me encontrar e estourar minha cabeça com aquela marreta. Eu já não conseguia mais prender a respiração e voltei a ofegar, dessa vez mais silenciosamente.
Os passos foram se aproximando e meu corpo paralisou. Escondi-me no lugar errado — pensei. As mãos mal aguentavam o peso da faca, tamanho era o incontrole que tinha sobre meu corpo. A sombra larga e indefinida apareceu aos meus olhos, deslizando no piso da cozinha. De repente ele parou. Parecia observar atentamente, mas não prosseguiu. Dirigiu-se até a porta do banheiro e girou a maçaneta. Depois fez a mesma coisa com as maçanetas das portas dos quartos. Todas trancadas.
Eu ainda não poderia tentar fugir. Seria pego, com certeza. Arrisquei espiar por trás da geladeira. Ele olhava fixamente para a porta do quarto de hóspedes. Usava realmente um sobretudo escuro que escorria a água da chuva trazida de fora. Um capuz cobria-lhe a cabeça e a mão esquerda segurava uma pesada marreta, dessas de quebrar concreto.
O invasor deu dois passos para trás e disferiu um forte chute na porta. Não foi o suficiente. Ele então acertou outros três pontapés e a porta não resistiu, escancarou-se completamente deixando visível o cômodo sem móveis, com apenas algumas caixas empilhadas num canto. Não havia necessidade de ele entrar no quarto para saber que eu não estava lá e voltou-se para a porta do banheiro. Acertou uma marretada na maçaneta e logo em seguida um chute e a porta também se abriu. De onde estava pôde ver que eu não me encontraria lá e foi para a terceira porta, a do meu quarto. Estava cansado, podia-se notar pela respiração, mas não hesitou e marretou a porta até vê-la inteiramente aberta. Nesse quarto havia vários móveis e ele foi entrando cautelosamente para me procurar.
Era a minha oportunidade de escapar. O corredor estava vazio e eu, sabendo que o homem havia entrado no quarto, disparei em direção à porta da sala. Minhas pernas, trêmulas, não respondiam aos meus estímulos como em outras situações. Cambaleei e escorreguei em meu próprio sangue deixado no piso do corredor.
Desesperado e desnorteado, fui levantando e procurando a direção da saída, quando vi a marreta passar zunindo por meu ouvido e estourar o reboco da parede ao meu lado. Fui patinando no piso molhado da sala e desviando — sabe Deus como — das marretadas disferidas pelo intruso que tentava inexplicavelmente estourar meu crânio. Num daqueles reflexos animais que só conhecemos quando precisamos lutar com todas as forças pela sobrevivência, eu consegui passar pela porta e empurrar a grade sobre ele, atrasando-o.
Corri sob a forte tempestade rumo ao portão. No caminho, encontrei os meus quatro cães, todos com suas cabeças quebradas e seus miolos sendo levados pela água da chuva. Corri sem parar, com todas as minhas forças, até chegar tomar distância e coragem suficiente para olhar para trás. Vi-o caminhando em outra direção. Havia desistido de mim, mas arrastava pelas coleiras os corpos deformados de meus três cães e, com eles, desapareceu na mata escura e molhada que circundava a casa. A casa em que jamais voltei.