DO VENTRE {SAMANTHA DE SOUSA}




         Entrou no quarto e deitou-se vagarosamente na cama. Ainda doía por dentro. Era mais que uma dor física, era qualquer coisa que doía lá dentro. Sentia-se vazia. De repente uma lágrima começou a cair em sua face. Era o arrependimento. Não devia, mas já o havia feito. Não tinha volta. Haveria perdão? O quarto estava escuro. Estava sozinha. E o silêncio crescia cada vez mais, dentro e fora de si. A escuridão também crescia. Os olhos se fechavam.
         Alguém batia à porta. Despertou assustada. A dor parecia ter cessado. Permaneceu deitada. Alguém realmente a esperava? Bateram-lhe novamente à porta. Levantou-se ainda sonolenta e foi atender a quem a esperava. Viu que a porta que dava para a rua estava apenas entreaberta, uma sombra se movia por detrás da porta. Aproximou-se e um forte vento abriu a violentamente a porta. Não havia ninguém. A noite já estava caindo, viu pela porta aberta que o céu já escurecia. Com as mãos trêmulas do susto recolocou no lugar uma mecha de cabelo que caíra sobre seus olhos e fechou a porta. Tudo escureceu.  Respirou fundo e acendeu a lâmpada. Ouviu atrás de si alguém se aproximando. Virou-se: era uma criança. Uma criança despida, sem sexo e sem rosto. Andava em sua direção. Estava paralisada. Quando a criança a abraçou um grito crescia dentro de si, mas não conseguia gritá-lo. Todo o seu corpo estremecia. O ar fugia-lhe dos pulmões.
         Alguém batia à porta. Despertou desesperada. Conseguia respirar. A dor continuava, aguda. Tudo estava escuro, mas conseguiu ver a sua frente o seu próprio reflexo no espelho da parede. Alguém batia à porta. Levantou-se com um pouco de dificuldade e foi ver quem a esperava. A porta estava fechada. Cuidou de acender todas as luzes. De frente ao espelho da sala arrumou com as mãos os cabelos. Abriu finalmente a porta, não havia ninguém. Mas quando os olhos caíram sobre o chão sua dor se tornou mais aguda, quase insuportável. O que era aquilo? Era ainda um pesadelo? Era um pequeno monte de não-se-sabe-o-que, algo disforme, coberto de sangue. Quase desmaiou quando seus olhos olharam direto para os olhos da criatura, eram uns olhos negros, opacos. Caía e se contorcia, mas de dor.
         _ Lena?... Lena... acorde... _ Ouvia alguém chamar. Com a vista um pouco embaçada pôde vê-lo. Téo.  - Que houve? - ele perguntou.
         _ Eu... fiquei tonta e...
         _ Encontrei você desmaiada na porta. Você está sentindo alguma coisa? Não quer ir para o hospital?
         _ Não... não precisa - não podia falar o que vira. Não podia falar da dor que sentira. Apenas riu-se. Foi apenas um susto. - Já estou melhor.
         _ Então tá! Tenho que ir para a aula agora, qualquer coisa você me liga, ok?
         _ Tudo bem!
         _ Ah... tinha me esquecido! Deixaram isso aqui para você! Tem seus olhos! - Dizia balançando a sua frente uma boneca. Pousou-a sobre a mesa, beijou-lhe a testa e saiu.
         Lena ouvia os passos de Téo se distanciarem, até chegar à porta, abrí-la e sair. Estava sozinha novamente. Sentou-se na cama e seus olhos caíram novamente sobre os olhos. Os olhos da boneca. Era num estilo antigo, o corpo de pano e a cabeça e as mãos de porcelana, usava um vestidinho de renda branca e fazenda floral, usava também um chapeuzinho da mesma composição, tinha uns olhos negros grandes e sem brilho e uma boquinha minúscula de um rosa quase transparente. De um todo, até que era adorável. Mas havia qualquer coisa naquela boneca que não a deixava à vontade. Respirou fundo, levantou, pegou a boneca e a guardou numa gaveta. Viu novamente seu rosto refletido no espelho, precisava de um banho. Precisava relaxar. Precisava de luz. Acendeu todas as luzes e se dirigiu ao banheiro. Mirou-se no espelho do banheiro, mais iluminado que os demais. Estava mesmo com uma aparência cansada, seus olhos estavam opacos, como os olhos da boneca.
         Ligou o chuveiro e tentou esquecer de tudo o que lhe havia acontecido nas últimas horas. Sentia a água gelada escorrer por todo o seu corpo. O som da água caindo impedia-lhe até mesmo de ouvir seus próprios pensamentos. Voltou ao quarto e a primeira coisa que avistou foi a pequena boneca sentada sobre a mesa e olhando para si. Voltou ao banheiro, devia estar enlouquecendo. Voltou ao quarto e ela ainda estava lá. Podia jurar que a havia guardado. Mas talvez não o tivesse feito, talvez tivesse apenas pensado em fazê-lo. Apressadamente pegou a boneca e  guardou na gaveta. Quando o fez sabia que seria difícil, mas não imaginou que seria tão difícil, não contava com os pesadelos, estava enlouquecendo. Pensava. Talvez não estivesse preparada para tudo aquilo. Não podia falar para ninguém. Precisava sair. Caminhar sem direção. Precisava parar de pensar em tudo aquilo. Vestiu uma roupa qualquer e saiu.
         Enquanto caminhava o vento parecia-lhe mais frio, nuvens se formavam no céu escuro. Já estava um pouco distante de casa. A rua estava vazia, ao menos era o que lhe parecia. Teve a ligeira impressão de que alguém a seguia, olhou para trás e não viu ninguém, apenas as copas das árvores que o vento balançava. Continuou, agora em passos mais ligeiros. Um vulto se movendo entre as árvores a fez parar de repente. Olhou ao redor. Sentiu o coração apertar. A respiração estava pesada.
         _ Lena...
         Era uma voz estranha, não sabia de onde vinha, não sabia de quem era. Chamavam seu nome. Voltaria para casa. Deu a volta e começou a correr. Ouviu passos atrás de si como se alguém também corresse. Não havia ninguém. O coração acelerava. De repente tudo silenciou. Até o vento. Tudo paralisou. Até as árvores. Ela também parou. Sentia o coração pulsar. Podia ouví-lo. Fechou os olhos na esperança de se acalmar. Quando os abriu viu atravessar a rua uma criança vestida num um vestidinho de renda branca e fazenda floral. A criança parou no meio da estrada e ficou defronte dela. Não tinha rosto. Segurava uma boneca, igual àquela que fora deixada a sua porta. Os olhos negros olhavam para ela. Os mesmos olhos opacos.
         _ Mamãe...
         Simplesmente começou a correr em direção a sua casa. Correu sem parar. Mesmo cansada não parava de correr. Abriu a porta nervosa. Finalmente podia chorar. Ali mesmo, ajoelhada na porta já trancada por dentro. Olhou para o espelho da sala e viu refletida: a boneca. Correu para o quarto, abriu a gaveta. Ainda estava lá. Abriu a janela e a jogou o mais longe que podia. Trancou-se no banheiro, como que buscando um lugar seguro. Logo percebeu que o espelho do banheiro estava quebrado, e em cada pedaço podia ver seus olhos. Eram seus olhos mas não o eram, alguns eram seus olhos, outros eram os dela. Abriu o armário para não mais ter de olhar para o espelho quebrado, mas o que vira dentro do armário era talvez pior. A cabeça da boneca, ensangüentada, com aqueles olhos, vivos. Uns olhos negros e brilhantes, com lágrimas escorrendo. No mesmo momento um choro de criança ecoava aos seus ouvidos. Sentia também algo escorrendo por suas pernas. Era sangue. E a dor voltava. Rasgando-lhe por dentro. Começou a gritar, mais para não ouvir o choro da criança.
         Trêmula, abriu a porta do banheiro, estava tudo escuro. A sua frente, a criança sem rosto, não a da estrada, mas a do pesadelo. Lena já não aguentava a dor. Já não tinha forças, mas não conseguia desmaiar.
         _ Ela quer nascer... _ dizia a criança e começou a torcer o pescoço da boneca que estava em suas mãos, ao mesmo tempo algo se torcia dentro de Lena. E a dor aumentava. A criança pousou a boneca ao lado do rosto desfigurado de torror de Lena e desapareceu. Os olhos da boneca sangravam. Lena também sangrava. Lena olhava bem no fundo dos olhos da boneca e via a si mesmo ninando uma criança. Viu-se se aproximando e olhando para si do lado de fora, levantava para mostrar para si a criança: tinha um rosto alvo como a porcelana e uns olhos grandes e negros. A criança tinha uns olhos grandes e negros e olhava para a Lena do lado de fora.
         _ Perdão... _ Murmurava Lena.
         O brilho fugia dos olhos de Lena e penetravam nos olhos de quem estava do lado de dentro dos olhos da boneca. Enquanto Lena murmurava “perdão”, a criança a chamava incessantemente “mamãe”.
         Quando Téo voltava para casa pode ver ainda Lena caminhando em direção ao lago carregando uma manta branca. Correu para alcançá-la. Viu-a se atirar nas águas, tentou salvá-la, mas era como se ninguém estivesse por lá. Voltou para casa. Encontrou o corpo de Lena estendido no banheiro, ensanguentado. Sentada ao seu lado, com um sorriso ingênuo estava a boneca, que parecia olhar e sorrir para ele.