ENTRE NÓS {FRANCIORLYS VIANA}

“Às vezes um segredo pode se tornar um punhal enterrado na carne” 
Eneida Cortázio Botelho




– Procura um médico, ou vais morrer... – Annece.
– Já procurei. O doutor Hipócrates vai me atender hoje à tarde – Bloch replicou. Deu a última cusparada, abluindo a boca do azedume. Vomitara uma substância escura; reparou fios de sangue mechando-a.

Annece dobrava roupas. Entreviu a vomição do esposo, por sorte, se tivesse atentado em zoom, perceberia a substância ebulir bolhas graúdas. Espocadas, barulhariam no quarto inteiro. Bloch agiu rápido, tirou a blusa e encobriu. Buscou uma pá. Recolheu. Jogou na lixeira externa da residência.

Enxugando, usa o dedo indicador, o suor da testa, expressou a um gato preto que veio sentar-se ao lado de seu pé:
– Foi por um triz, bichano... Por um triz... – entrou.

Entrou o gato na lixeira. Só se ouviu o miado em desespero. Minutos de quietude. Abriu-se a tampa. O osso do animal foi arrojado longe.

No espelho do closet, Bloch apalpa a barriga – que sobejou dela –, de um mês para cá, cresceu-lhe um tumor, aflorado no umbigo. Tumor é modo de dizer. Parecia uma bola de handebol, dado seu tamanho grotesco.

Bloch teve ojeriza por aquela bolota de carne, ainda mais por saber sua origem... Sem que Annece perceba, apanha uma faca de pão, cisca o tumor, incentivando um denodo. Quem sabe amputasse aquilo de si, aquela bosta não lhe permitia sequer foder. Naftalina perdera o interesse sexual – não tem culpa. Quem desejaria transar com um homem possuidor de uma esfera rica em veias, densidade maleável, como silicone. Não vindo coragem, deixou a faca cair na pia. Sentiu uma fisgada no olho do tumor, e outra, e outra, e outra. Seus olhos esbugalharam, quase grita. Não o fez porque lutava para não suscitar pulgas atrás da orelha na esposa.

No lugar onde fisgava, nas paredes umbigo, uma impigem. Ali, exatamente ali, iniciou a esfera.

– Foi aqui, esta impigem..., aqui, depois que..., esta bolota, surgiu esta bolota... – Bloch religa o Tempo.

Os outros caçadores, seus amigos, tinham ido dormir. Bloch polia o rifle. Ego nos píncaros por ter alvejado três pacas e um porco-do-mato. Corujas rasgavam o ar. Entrou em alerta o instinto matador. Armou mira na direção das árvores. Inlocalizou as aves agourentas. Resolveu entrar na mata. A insônia não permitiria repouso mesmo. Ia se distrair. Dia seguinte voltaria para Anankeópole, para o trabalho, para Annece.

Caminhou dez minutos sem sucesso. Percebia folhas se mexendo. Mas as benditas corujas não se mostravam. Um feixe de luz atingiu sua face. Vinha detrás de troncos de jequitibá. A luz contrastava com o negror da noite. “Que diabo é isso?”. Assumiu cautela. Esgueirou-se. Sussurros de gente falando. Não era uma linguagem clara. Inglês, alemão... Nem Este narrador conseguiu distinguir. Bloch se deitou. Agora se arrastaria, para não correr risco de ser visto. Um metro, dois, três e ploft! Algo pesado caiu em suas costas. Bloch se virou alarmado. A coisa rolou no chão. Escorado num tronco, usou o cabo do rifle para remexer o solo, tapete de folhas. Deu com uma coruja tesa; como se tivesse sido empalhada. Os olhos do animal permaneciam vivos, e o trespassavam. Uma língua olhareística, fosse um pidgin, bastaria para expressar um aviso. A coruja teria avisado. Então, seus globos oculares se despregaram do encaixe, rolaram. Bloch sentiu o estômago embrulhar. “Merda! Que porra é essa?”.

Os sussurros cessaram.

Recomposto, Bloch cruzou o limiar entre o conhecido e o desconhecido. Enxergou o que muitos ufólogos só conhecem em teoria: uma nave espacial, embaixo dela, figuras humanoides encapuzadas em torno de um altar. Formação circular, não era possível ver o que faziam. Bloch ignorou ser um óvni – dedução deste narrador –, pensou se tratar de algum treinamento da Força Área. Observou que havia uma alternância entre eles. Um entrava no meio da roda, o outro saía, depois regressava.

A curiosidade, assassina de felinos, coçou-lhe a mente. Descobriria o que faziam os homens encapuzados. Pé a pé, pé a pé, pé a pé. Ocultou-se atrás de uma pedra. Espionou. Avistou sobre o altar – um retângulo luminoso – uma mulher nua, desacordada, sendo violada por um dos homens encapuzados. Homens? Tirado o ornamento, estava despido, e não, senhores! Não detinha aparência humana! Salvo, a corpostrutura. No mais: tinha pequenos chifres espalhados ao longo do que poderia ser a coluna vertebral; uma cabeça sem olhos, sem nariz, ou boca; mãos duplas, com dedos alongados, visguentos, cobertos de escamas. Tinham cauda. Esta cauda passava-lhe por baixo das pernas, se introduzia na vagina da mulher. O movimento que fazia era similar ao humano: vai-e-vém, vai-e-vém, vém-e-vai vém-e-vai. Ela vertia sangue por virilhas arroxeadas.

O estupor de Bloch acabou sendo sua desgraça. Sentiu a cabeça girar, antecedência de desmaio. Apertou instintivamente o rifle. Deflagrou sem querer. Bam!A besteira estava feita. Flagraram-no, os homens encapuzados.

Não desmaiou. O tiro devolveu-lhe o tino. Impulsão para fugir. Nem viu como foi atado pelos braços, meio que os alienígenas – ou homens encapuzados, se assim o leitor se afetuou – se teletransportaram. Este narrador, perplexo, está limitado em sua narração. Sei tanto quanto Bloch sobre o modo que eles utilizaram para locomoção de um lugar ao outro. Quando dei conta, estava nosso personagem como está: neutralizado ao pé do retângulo.

Que farão com ele, estes óvnis?

Um, transparecendo aspecto de mandatário, tomou a voz e comunicou algo lá em sua língua; um chiado de rádio fora de sintonia.

O violador se retirou da mulher. Um grupo carregou-a para outro lugar. Sumiu. Dois deles ergueram Bloch e o deitaram no altar, em posição de bruços.

Bloch em vão berrava palavrões, súplicas, e se debatia. O alienígena-líder impôs as mãos sobre ele, paralisou-o (igual a coruja caída do céu). Seus olhos tinham consciência do entorno. Sentiu quando lhe arrancaram as vestes. Prenúncio. Não podia ser... Não podia... Bizarro! O violador se aprumou – garanhão das galáxias. Este narrador assistiu a cauda crescer, girar como lâmina de furadeira, escorrer, e penetrar o ânus de Bloch. Arriei as pálpebras sob o custo de ficar sem ter o que narrar.

Abri minha visão e eles tinham ido. Bloch mantinha os olhos abertos – morto, quem lhe obsequiará um passar de mãos que o libertem desta existência-gaiola? – na direção deste narrador. Todo narrador é invisível para personagens, por isso, me enxergou não. Quis ajudá-lo, as leis naturais da teoria narrativa me impediram (“fodam-se os teóricos e seus postulados acadêmicos!”, vociferei para mim mesmo, na solidão de minha companhia). Presenciei o corpo de Bloch retornando ao seu domínio. Ele se assentou. Cabisbaixo. O que ocorrera consigo? Violentado por alienígenas. Esta realidade soou como título de filme trash: “em cartaz: o homem estuprado por aliens”. Inexistia uma maneira menos vexatória de divulgar isso com os amigos caçadores, com Annece, com o mundo. Imaginemos Bloch a contar “Gente, tive o cú arrombado por seres de outro planeta!”. Além da incredulidade, sobrariam pilhérias e sacaneamentos. “Melhor guardar só pra mim”, ponderou.

– Bloch – vozearia dos caçadores que deram pela falta dele – que tu faz aí nesse chão, cara? E que sangue é esse? Tu tá ferido, sumano?

– Hã... É... Vim atrás de um porco do mato. Patetando, escorreguei e bati nesta pedra...
– Será necessária uma cirurgia para remoção, Sr. Bloch – Dr. Hipócrates manuscrevia um formulário – não entendo este tumor. Não consta registro de coisa igual na literatura médica. Não é câncer, já fizemos exames. É como se a própria carne tivesse tomado a decisão de avolumar.
– Por favor, doutor. Tire essa coisa da minha barriga! Quero meu físico de volta. Sinto saudade até mesmo da minha barriguinha de cerveja.

As palavras de Bloch causaram risos no Dr. Hipócrates. Este levantou da cadeira, e se dirigiu ao frigobar para pegar água. Calculava mentalmente a data para a operação.

– Aiiiiiiiiiiiii!

Bloch se esgoelando de dor, desaba ao chão. Contorce-se com fisgadas, melhor, facadas no olho do tumor. Dr. Hipócrates se apressa em socorrê-lo. Há um reviro no interior do tumor. Algo se esforça para perfurar a pele. Cada estocada é vista como a ponta de uma lança. O médico não sabe o que fazer. Tenta alcançar o telefone. Mas é encoberto por uma gosma negra, oriunda da esfera, que explodiu. Bloch está morto.

Dr. Hipócrates quer se limpar. A gosma se impregna. Invade-lhe olhos, boca, ouvidos, nariz, em um minuto, ceifa-o.

A gosma se amontoa. Erigi-se uma espécie de cone giratório. Desenha o formato humano. E este formato imita a feição de Bloch. Um clone exsurge da substância alienígena. Forma de vida inteligente, pois tratou de pôr em si as roupas do defunto.
Impôs as mãos sobre os restos mortais de ambos e os desintegrou.

– Bloch – Annece comentou na hora do jantar, observando o marido – você tá bem?
– Sim, terráquea...
– Pergunto por que desde que chegou não para de me chamar “terráquea”. Que foi? Virou extraterrestre? – ensaiou um riso, não sendo acompanhada, fechou a cara. Reclamaria da falta de modos do marido – tira a cabeça de dentro do prato!

Bloch, melhor, o alienígena, estava com a face inteira enfiada na sopa, ajeita o pescoço, e encara-a com um olhar oblíquo e dissimulado.

A história encerra aqui e assim. Este narrador pede desculpas a você, leitor, é consabido que sou limitado ao escritor; alforriado, convertendo-me numa abstração sem pele. Ele determinou o encerro. Tal quando você, encontro-me repleto de incógnitas. Por exemplo, o que pretende o alien fingindo ser Bloch? O filho da puta do escritor não quis me segredar. Verberou que um dia qualquer (dando na telha) conceberá uma continuação, ou não. É exótico, o cara! Bem, lanço-me à minha própria imaginação, a título de cogitação, e penso: a troca entre Bloch e o alien se deu como parte de um projeto maior, clichê, de subjugo da raça humana. Aliens estão se infiltrando em nosso meio. Um dia, proclamarão um extermínio. Fica mais fácil, já adaptados aos nossos cotidianos e destros no manuseio e bloqueio de nosso arsenal bélico. A priori, a moça violada era o único experimento do dia, mas Bloch achou de ir atrás da coruja... – quiçá, a coruja o tenha atraído.

Dou razão a Ellen Parr quando sentenciou “A cura para o tédio é a curiosidade. Não existe cura para a curiosidade”.
Sem cura, Bloch acabou com as pregas esfaceladas, a barriga escancarada, a vida substituída, e alienigenizado...
Eles existem, leitor, os ET’s, e habitam simulacros humanos. Qualquer um é suspeito de ser um alien... Inclusive tu, leitor...


[Após esta última frase, o narrador não foi mais visto. Em face do que, eu, o escritor, indago: terá sido abduzido por saber demais?]


[Findada a indagação acima, o escritor não foi mais visto]


Autoria: Franciorlys Viana