O HABITANTE {SAMANTHA DE SOUSA}


         A tarde descia leve e brilhante. Gostava de fins de tarde assim, iluminados e tranquilos.  Acostumara-se a sentar-se naquele horário à porta de sua casa com  uma xícara de chá quente acompanhada do velho Nietzsche, era quase um ritual, o chá e o livro traziam a noite. Suas noites costumavam ser tranquilas, com uma boa música, pés enfiados em meias, distrações esporádicas. Era, de um todo, uma pessoa extremamente calma. Talvez seja até mesmo estranho e angustiante aos demais imaginar como uma pessoa como ela pudesse se tornar o que ela se tornara, mais difícil ainda é compreender a razão que a levou a tal estado. Não se pode falar de  impossibilidades, pouco se sabe do que possibilitou tal situação, entretanto, nada se sabe do que a impossibilitaria. Talvez até fosse possível premeditar o que viria adiante, mas seria inútil, seria divagar infinitamente e não chegar a conclusão alguma, passos vãos.


         O que lhe aconteceu não tem exatamente um ponto inicial, poder-se-ia dizer até que mal o tumor lhe aparecera já viera à furo. Há, talvez, um ponto de  agravamento que se passou justamente numa dessas tardes em que esquecia de si sentada à porta. Esquecia-se de si, e parece que a partir daquele momento também  começara a se abandonar, ou a se perder.


         A tarde já se despedia, a xícara vazia pousada no chão, o livro também já se fechando, o silêncio tomava conta daquele instante. Gostava de aproveitar momentos assim, até porque só os tivera quando finalmente pode morar sozinha. Levantou-se. Juntou tudo do chão, colocou a xícara na pia e levou o livro para o quarto, e nesse pequeno intervalo é que lhe veio a primeira de uma série de estranhas sensações. Jogou o livro na cama e apertou-lhe por dentro um desespero insólito, a impressão de  que alguém entrava na casa. Correu à porta, que ainda estava aberta, observou algum instante, não havia ninguém. Acendeu a luz e trancou a porta à chave. Pouco a  pouco foi recuperando a calma.


         Tal sensação não era de um todo desconhecida por ela, já a sentira outras vezes, mas há muito tempo, quando ainda era criança, mas era um medo infantil,  aquele medo de levantar-se sozinha no escuro ou de ouvir sons estranhos que não se sabe se era na rua ou de dentro de casa. Tinha sido uma criança medrosa. Mas ela não  era mais uma criança, aliás, conseguira um tal controle que parecia ter superado grande parte de seus medos ingênuos e irreais. Por que essa sensação agora? Um banho,  roupa limpa, comida quente, isso bastaria para esquecer aquilo. Por pouco tempo. Não demoraria muito pra vir uma sensação mais forte e aterradora. Deitada e de luzes apagadas, como sempre fazia, preparava-se para dormir, ficara até tarde mergulhada em um completo nada. Fechou os olhos, e como se dependesse disso, no mesmo instante  ouviu a porta do quarto se abrindo e sentiu que alguém se deitava na cama, sentiu apenas um peso baixando ao seu lado. Levantou-se de súbito e acendeu a luz, não  havia nada, não havia ninguém, a porta ainda estava fechada. Talvez tivesse sido um pesadelo, efeito da impressão de mais cedo que ainda se mantinha. Procurou justificativas, explicações, mas nada lhe devolveria a calma naquela noite. Não conseguiu dormir. Amanheceu completamente atordoada.


         Durante o dia, sentiu na boca o gosto amargo da noite anterior. Seus olhos pesavam, o corpo pesava, não era apenas sono, parecia estar doente. Passou o dia inteiro deitada, tentando dormir, talvez tenha conseguido alguns minutos de descanso, mas parecia sempre lúcida. Sempre aquela sensação de que alguém tinha entrado em sua casa e que lá ainda estivesse. Atravessaria mais uma noite em claro. Buscou livros, contos, poemas, precisava se manter distante. No dia seguinte, seu corpo já não aguentava mais o cansaço, acabou por adormecer, dormiu o dia inteiro e a  noite seguinte também. Foi um sono pesado, porém tranquilo. Parecia se recuperar. Durante  todo o resto da semana conseguiu seguir sua rotina, exceto por um ou outro pesadelo mal lembrado pela manhã.


         Tentava não se preocupar com isso, não havia motivos para se impressionar. Não havia. Lembrou-se de quando era criança, de quando tinha assistido um desses filmes sobre fantasmas amaldiçoados, parecia tão real quando eles iam visitá-la durante os sonhos, ria ao lembrar disso. Fantasmas não existiam, apenas os fantasmas do seu passado. Costumava ter medo de filmes de terror, tanto que acabara tomando gosto pelo gênero. Sim, era engraçado tudo aquilo, mais engraçado ainda era reviver os medos de infância. O chá esfriava na xícara enquanto ela mergulhava em tantos pensamentos, não servia mais para consumo. Precisava sair, respirar um pouco. Mas ao entrar no quarto, diante do espelho, viu o pesadelo recomeçar: não era ela que estava refletida. Aquela imagem cortou-lhe como um grito rouco de pavor, sentiu uma  forte tontura tomar conta de seu corpo e  uma dor perfurando sua cabeça, era como sentir a própria morte de perto. Caiu trêmula no chão, suava frio. Sentiu novamente aquela presença, aproximava-se aos poucos, andava devagar, passos pesados, podia ouvir. Ouvia sua respiração, era abafada, cansada. Sentiu-a mais próxima de seu corpo, não a tocava, mas podia sentir seus dedos compridos muito perto de sua pele, como se quisessem rasgá-la. O coração batia tão forte que doía, tudo girava, tudo  escureceu de súbito. Tudo apagou.


         Sentia seu corpo imóvel, dormente, como se não fosse seu, como se não estivesse lá dentro. Os olhos não abriam, qualquer esforço seria inútil. Parecia adormecida, talvez morta, de qualquer maneira, não queria acordar. Sentia paz. Queria permanecer ali, aonde quer que fosse. Distante. Mas, de onde vinha esse desejo? Nunca o tivera antes, nunca pensara em morrer. Mas era tão bom estar morta. Acordou sufocada, como quem desperta de um afogamento, puxava o ar com toda a força, mas nada entrava. Aos poucos voltou a sentir novamente seu corpo, suas mãos, seus pés, enxergava. Permaneceu ainda deitada no chão por algum tempo, tentava compreender, mas tudo o que lhe acontecera escapava da memória como água  escorrendo. Permaneceu ali deitada vendo o tempo passar, sem vontade alguma de se levantar ou se mover.


         Dois dias se seguiram desde a estranha experiência. Guardou aquilo para si. E guardou também uma dor que crescia lentamente dentro do seu corpo. Parecia estar sendo invadida, habitada por alguma coisa. Esses dois dias se seguiram não menos pavorosos, nada relevante aconteceu, mas havia perdido completamente sua paz, perdera o sono, perdera a fome. Na faculdade os colegas estranharam sua desatenção, seu olhar vago, seus passos pesados. Sentia-se muito fraca para o convívio público, mas agora que estava fora de casa, sentia medo de voltar. E se quando abrisse a porta ele estivesse lá? Mesmo estar parada em frente a sua porta ainda trancada era assustador.


         Girou a chave. O coração palpitava forte. Sua mão tremia, não sabia se de medo ou de fraqueza. Abriu a porta e esperou. Esperou por cerca de meia hora. Ficou ali parada, olhando para dentro da casa escura, procurando um movimento, um som, uma forma, mas nada, a casa estava vazia. Entrou e acendeu as luzes. Deitou na cama, seu corpo estava todo dolorido, sentia cada músculo vibrar ao recostar-se no colchão. Queria dormir, mas dormir para sempre. Aquela sensação de ter algo dentro dela persistia, e aumentava a cada instante, tornou-se náusea. De súbito, seu corpo sem forças ergueu-se como num espasmo, tentava expulsar aquilo de dentro dela. Quase caindo no chão, vomitava sangue, um sangue morto, talhado e escuro. Gritava desesperada, era a primeira vez que conseguira realmente gritar ,gritava ainda mais porque não era a sua voz que ouvia naquele grito. Aquela voz parece que vinha do inferno. Ela se contorcia de dor.


         Novamente pode ouvir os passos se aproximando, e não era de apenas um, eram vários, e ela continuava gritando, como que chamando todos eles. O sangue ia se espalhando pelo chão, seu corpo esfriava, sentiu as pernas moverem-se sozinhas, enrolavam-se, não conseguia controlar. Olhou para o espelho e viu. Era horrendo. A criatura se apropriara de seu corpo. Estavam lá, as duas almas, habitando o mesmo corpo. Ela podia ver através daqueles olhos que não eram mais seus. Sentiu os ossos estalando, pareciam se partir. A criatura olhava para ela e ria, gargalhava como o próprio diabo. Sentiu que vomitaria novamente, e mais sangue se espalhava no quarto. Sentiu o cheiro da morte e uma imensa vontade de rir também,  mas seu rosto estava rígido como pedra, e as feições deformadas.


         Alguém batia freneticamente a sua porta. Chamavam-lhe o nome. Como se abandonasse seu corpo, perdeu rapidamente a rigidez e desfaleceu, mas permaneceu consciente, a porta se abrira violentamente. Ouvia vozes, não as mesmas de antes. Alguém tocava nela. Alguém a tocava, sentia nojo daquilo, ali dentro os anos se diluiam, não havia presente ou passado. Os dedos do demônio eram compridos, afiados, rasgavam sua carne de dentro para fora, o demônio a habitava e não iria embora. Ele sussurrava, ele sentia raiva, ódio. Ela se perdia dentro de si, em silêncio.


***


         Médicos, tratamentos, nada parecia fazer efeito, nada a fez voltar. Ninguém sabia explicar o que acontecera. Repousava tranquilamente em seu leito, nunca ninguém presenciou uma crise sua, até porque nunca as tiveras em público nem nunca mais as tivera. Dormia e acordava regularmente, mas não se movia, mal se podia sentir sua respiração, não aparentava consciência, carrega apenas um olhar vazio, que não olhava. Não via  mais o lá fora, não pertencia mais a ele. Estava condenada.