JURUPARI {FRANCIORLYS VIANA}


Vai passando discretamente por trás da cadeira de balanço do avô. Este percebe, chamando-o quer saber para onde ele irá vestido igual a um “papagaio de circo”. O neto explica que a indumentária colorida está na moda. O idoso não entende como uma camisa lilás-fosforescente, um sapatênis flavo com cadarço verde e solado roxo, ainda outra extravagância, uma calça mais justa que a justiça divina, cheia de rasgados, pode agradar aos jovens de hoje em dia.
Quando o idoso começa a pronunciar a frase “no meu tempo...” é interrompido.
– Qualé, my brother? Corta esse papo quadrado! Tô do jeito que as gatinhas curtem. Vô namorar bastante esta noite!
 A mãe, lá do quarto, impulsionando a máquina de costura, ouve-o e grita: “Isso são modos de falar com seu avô? Respeita os mais velhos, se não vou aí e te dou umas boas palmadas!”.
 Na sala neto e avô riem da irritação da costureira. São cúmplices mórbidos. O idoso sente sua alma pulsando na veia indômita dos dezenove anos do jovem. Está cansado de prover dinheiro para ele ir ao cinema, passear com os amigos, ou viajar para balneários.
No fundo, bem no fundo, no baú das raras alegrias que não sucumbiram ao tempo, habita-lhe uma filosofia que afirma “quando meu neto pulsa/vive, é como se eu fosse o coração batendo/revivo”.

Esse sentimento rudimentar de avô é sagrado.

 O avô indaga onde ocorrerá o festejo. O neto corrige-o, esclarecendo que se chama “Rave”. Responde que será no Vila Nova; conhecida sede dançante. A única remanescente dos dias aurorais do idoso, agora, repaginada e adequada à exigência dos novos frequentadores.
A menção a sede deixa o ancião bastante assustado. O neto percebe e indaga: “O que tá pegando, vô?”. O idoso pigarreia, deixa de balançar-se, semblante fechado, inclina o peito para frente.
– Vila Nova? Foi lá que um dia eu vi o Jurupari.
– Jurupari? O que é isso? A gente come? – o jovem caiu na gargalhada.
– Jurupari é o nome que tomei do Guarani para me referir ao demônio.
– Ah, tá! O senhor quer que eu acredite que o demônio – de puro desdém fez questão de espichar a pronúncia da vogal “o”– apareceu pro senhor, no Vila Nova? 
– Sim, meu filho. Tal qual vou te contar. Quando eu tinha a tua idade, o Jurupari resolveu me pregar uma peça. Fui ao Vila Nova participar dum baile patrocinado pelo saudoso Prefeito Antero Dias (que Deus o tenha num bom lugar!). A sede estava ornamentada com adereços ribeirinhos. Se não me falha a memória o tema era justamente sobre os mitos e lendas da Amazônia. O prefeito escolheu essa temática, não porque se importasse com o folclore nortista, mas porque sua filha Heliane Patrícia, que era professora formada, garantiu que isso daria um ar culto ao mandatário do município...
 O jovem percebeu que estava prestes a ouvir uma daquelas histórias mirabolantes do avô. Admiráveis dos seis anos aos dez, interessantes dos onze aos quatorze, toleráveis dos quinze aos dezesseis, fatigantes dos dezessete até a idade atual. Não é que necessariamente os causos tenham ficado prolixos. É que os adultos na sua adultice sempre buscam a verossimilhança no que lhes são contados. Quando não as encontram, reputam as palavras por mentiras e as desprezam. Bom será o dia em que for desvendado que se tem buscado algo em uma procura invertida. Dever-se-ia olhar a vida e em não encontrando verossimilhança com a ficção, execrar a realidade por não se ter elevado ao patamar dos romances, contos, poemas fábulas e crônicas.
O neto, que antes de ser parado pelo avô pretendia esperar os amigos no pátio da casa, olhou o relógio e pensou “A galera não deve demorar muito. O vô vai começar a lorota dele, vô fingir que tô gostando, logo meus amigos chegam, interrompo o papo e zarpo fora!”.
Plano elaborado, voltou à atenção ao idoso que continuava sua falação.
–... Estava vestido com extrema elegância. Na cabeça, um topete feito com o melhor óleo de mutamba do boteco. Seu avô era um bom pé de valsa! Os brotos brigavam pra que eu os puxasse pra uma contradança. Naquela noite, estava cansado. Dancei com as irmãs Sara e Selma (as “frenéticas”, como eram conhecidas), depois fui sentar a um canto, solitário. Tapava-me a vista os casais de namorados que dançavam logo à frente. Ouvia-se na caixa de som uma música da ternurinha Wanderléa. Então, uma moça belíssima surgiu entrecortando a chusma de dançantes. Nunca nestes setenta anos de vida, encontrei uma garota como aquela. Era simplesmente estonteante! Tinha as madeixas louras. Não um louro oxigenado. Um louro puro, quase dourado. Unhas pintadas de esmalte preto. Boca carnuda. Dentes branquinhos. Trajava um vestido rubro. O interessante é que ela veio em minha direção. Sim, na direção do seu avô. Estendeu-me as mãos, convidando-me pro meio do salão. Abismado que estava nem atentei pro fato de que não era usual uma mulher arrastar um homem pra dançar. Emendamos treze músicas seguidas. Ela me parecia um anjo assanhado. Nesse ritmo levamos até quatro horas, quando me dei conta de que até ali não pronunciara um palavra se quer com a desconhecida. Resolvi arriscar: “Qual é o teu nome?”. Ela me fitou. Vi suas retinas de um vermelho mais forte que vinho em copo de vidro. Ela abriu um sorriso insinuante. Riu de canto de boca. Respondeu:
“Me chamo Luiza”.
Nesse instante a noite começou a se recolher no horizonte. Notei que após me dizer o nome, ela olhou pro firmamento e fez uma expressão de preocupação. Desapegou-se das minhas mãos. Sem me olhar uma última vez, virou-se e se entremeteu na multidão, as carreiras. Sumiu. Demorei alguns minutos aguardando que ela voltasse; como percebi que não, saí a sua procura em todos os cantos do Vila Nova, sem êxito. Perguntei aos meus amigos se a tinham visto, mas eles responderam que não tinha visto ninguém comigo naquela noite. Que estive sozinho o tempo todo. Certo de que não estava tresloucado. Continuei procurando a mulher, da qual conhecia apenas o prenome “Luiza”, que partira sem nem se quer me deixar, a semelhança daquele famoso conto de fadas, o sapatinho de cristal como pista. Um prenome e nada mais. Quantas Luizas devem existir no mundo? Após vasculhar toda a sede, veio à mente o lugar óbvio onde ela deveria estar: o toalete. Lógico! Ela sentiu vontade de urinar, não deu pra segurar, e saiu correndo. Se bem que faz tempo... Dirigi-me rapidamente pro lado onde ficava o banheiro. Encontrava-se fechado. Sorte que a porta era de madeira. Bati repetidas vezes. Chamei: “Luiza! Luiza! Luiza!”, não houve resposta. Fiquei preocupado. Como os seguranças do Vila Nova estavam ocupados demais pra me socorrerem, resolvi arrombar a porta. Com um chute o fiz. Foi então que a vi por um instante, não mais que um instante. Ela estava de costa pra mim. De repente seu cabelo louro começou a se transformar num longo rabo. Na cabeça surgiram chifres. Braços, pernas e pescoço foram recobertos de pelo. A mulher ficou com a aparência dum bode. O ar se empestou dum odor insuportável de enxofre. Ela (ele) se virou pra mim com um aspecto horrível. Olhos esbugalhados. Soltava fumaça pela narina. Rinchava como cavalo. Fiquei apavorado. Juro que me urinei todinho! Comecei a clamar pelo sangue de Nosso Senhor. Congelado de pavor, espiei nos olhos da criatura. Ele (ela) me reparou. Deu um berro de agonia, um pulo para o alto e evaporou no ar. Só depois disso consegui me mexer do lugar. O bicho que vi era o cramulhão em pessoa.
 Após terminar o relato, o neto estava sobressaltado, mas para não dar o braço a torcer gracejou: “Cramulhão, é? Além da Jovem Guarda, será que ele também é chegado num batidão?”, e pôs-se a gargalhar, sob a advertência do avô que o mandava ter cautela com o assunto. Lá fora um carro buzinou. Os amigos do jovem tinham chegado. Ele deu um beijo na mãe (que lhe rogou que retornasse cedo) e outro no avô. A este, disse:
– Se preocupa não vô, se o capeta/cramulhão/demônio/Jurupari me aparecer hoje eu xaveco também!
Na festa, depois de exagerar no energético, o jovem, sentindo-se nauseabundo, deixou a companheira dançando com um amigo e foi se sentar a um canto. Cinco minutos depois, uma mão de unhas esmaltadas de preto o convidava para dançar. Vendo tudo trêmulo, distinguiu levemente uma cor avermelhada no vestido da pessoa que lhe arrastava para o salão. Ouvia-se na aparelhagem a música Closer to Heaven, do DJ israelense Astrix. Em dado momento, enrolou seus dedos nas madeixas da moça, percebeu que eram louras. Resolveu perguntar:
– Gata, qual é mesmo o teu nome?
Ela abriu um sorriso insinuante. Riu de canto de boca. Respondeu:


 – Me chamo Luiza.