Vai
passando discretamente por trás da cadeira de balanço do avô. Este percebe,
chamando-o quer saber para onde ele irá vestido igual a um “papagaio de circo”.
O neto explica que a indumentária colorida está na moda. O idoso não entende
como uma camisa lilás-fosforescente, um sapatênis flavo com cadarço verde e
solado roxo, ainda outra extravagância, uma calça mais justa que a justiça
divina, cheia de rasgados, pode agradar aos jovens de hoje em dia.
Quando
o idoso começa a pronunciar a frase “no meu tempo...” é interrompido.
–
Qualé, my brother? Corta esse papo quadrado! Tô do jeito que as gatinhas
curtem. Vô namorar bastante esta noite!
A mãe, lá do quarto, impulsionando a máquina
de costura, ouve-o e grita: “Isso são modos de falar com seu avô? Respeita os
mais velhos, se não vou aí e te dou umas boas palmadas!”.
Na sala neto e avô riem da irritação da
costureira. São cúmplices mórbidos. O idoso sente sua alma pulsando na veia
indômita dos dezenove anos do jovem. Está cansado de prover dinheiro para ele
ir ao cinema, passear com os amigos, ou viajar para balneários.
No
fundo, bem no fundo, no baú das raras alegrias que não sucumbiram ao tempo, habita-lhe
uma filosofia que afirma “quando meu neto pulsa/vive, é como se eu fosse o
coração batendo/revivo”.
Esse sentimento rudimentar de avô é sagrado.
O avô indaga onde ocorrerá o festejo. O neto
corrige-o, esclarecendo que se chama “Rave”. Responde que será no Vila Nova;
conhecida sede dançante. A única remanescente dos dias aurorais do idoso, agora,
repaginada e adequada à exigência dos novos frequentadores.
A
menção a sede deixa o ancião bastante assustado. O neto percebe e indaga: “O
que tá pegando, vô?”. O idoso pigarreia, deixa de balançar-se, semblante
fechado, inclina o peito para frente.
–
Vila Nova? Foi lá que um dia eu vi o Jurupari.
–
Jurupari? O que é isso? A gente come? – o jovem caiu na gargalhada.
–
Jurupari é o nome que tomei do Guarani para me referir ao demônio.
–
Ah, tá! O senhor quer que eu acredite que o demônio – de puro desdém fez
questão de espichar a pronúncia da vogal “o”– apareceu pro senhor, no Vila
Nova?
–
Sim, meu filho. Tal qual vou te contar. Quando eu tinha a tua idade, o Jurupari
resolveu me pregar uma peça. Fui ao Vila Nova participar dum baile patrocinado
pelo saudoso Prefeito Antero Dias (que Deus o tenha num bom lugar!). A sede
estava ornamentada com adereços ribeirinhos. Se não me falha a memória o tema
era justamente sobre os mitos e lendas da Amazônia. O prefeito escolheu essa
temática, não porque se importasse com o folclore nortista, mas porque sua
filha Heliane Patrícia, que era professora formada, garantiu que isso daria um
ar culto ao mandatário do município...
O jovem percebeu que estava prestes a ouvir
uma daquelas histórias mirabolantes do avô. Admiráveis dos seis anos aos dez,
interessantes dos onze aos quatorze, toleráveis dos quinze aos dezesseis,
fatigantes dos dezessete até a idade atual. Não é que necessariamente os causos
tenham ficado prolixos. É que os adultos na sua adultice sempre buscam a
verossimilhança no que lhes são contados. Quando não as encontram, reputam as
palavras por mentiras e as desprezam. Bom será o dia em que for desvendado que
se tem buscado algo em uma procura invertida. Dever-se-ia olhar a vida e em não
encontrando verossimilhança com a ficção, execrar a realidade por não se ter
elevado ao patamar dos romances, contos, poemas fábulas e crônicas.
O
neto, que antes de ser parado pelo avô pretendia esperar os amigos no pátio da
casa, olhou o relógio e pensou “A galera não deve demorar muito. O vô vai
começar a lorota dele, vô fingir que tô gostando, logo meus amigos chegam, interrompo
o papo e zarpo fora!”.
Plano
elaborado, voltou à atenção ao idoso que continuava sua falação.
–...
Estava vestido com extrema elegância. Na cabeça, um topete feito com o melhor
óleo de mutamba do boteco. Seu avô era um bom pé de valsa! Os brotos brigavam
pra que eu os puxasse pra uma contradança. Naquela noite, estava cansado.
Dancei com as irmãs Sara e Selma (as “frenéticas”, como eram conhecidas),
depois fui sentar a um canto, solitário. Tapava-me a vista os casais de
namorados que dançavam logo à frente. Ouvia-se na caixa de som uma música da
ternurinha Wanderléa. Então, uma moça belíssima surgiu entrecortando a chusma
de dançantes. Nunca nestes setenta anos de vida, encontrei uma garota como
aquela. Era simplesmente estonteante! Tinha as madeixas louras. Não um louro
oxigenado. Um louro puro, quase dourado. Unhas pintadas de esmalte preto. Boca
carnuda. Dentes branquinhos. Trajava um vestido rubro. O interessante é que ela
veio em minha direção. Sim, na direção do seu avô. Estendeu-me as mãos,
convidando-me pro meio do salão. Abismado que estava nem atentei pro fato de
que não era usual uma mulher arrastar um homem pra dançar. Emendamos treze
músicas seguidas. Ela me parecia um anjo assanhado. Nesse ritmo levamos até
quatro horas, quando me dei conta de que até ali não pronunciara um palavra se
quer com a desconhecida. Resolvi arriscar: “Qual é o teu nome?”. Ela me fitou.
Vi suas retinas de um vermelho mais forte que vinho em copo de vidro. Ela abriu
um sorriso insinuante. Riu de canto de boca. Respondeu:
“Me
chamo Luiza”.
Nesse
instante a noite começou a se recolher no horizonte. Notei que após me dizer o
nome, ela olhou pro firmamento e fez uma expressão de preocupação. Desapegou-se
das minhas mãos. Sem me olhar uma última vez, virou-se e se entremeteu na
multidão, as carreiras. Sumiu. Demorei alguns minutos aguardando que ela
voltasse; como percebi que não, saí a sua procura em todos os cantos do Vila
Nova, sem êxito. Perguntei aos meus amigos se a tinham visto, mas eles
responderam que não tinha visto ninguém comigo naquela noite. Que estive
sozinho o tempo todo. Certo de que não estava tresloucado. Continuei procurando
a mulher, da qual conhecia apenas o prenome “Luiza”, que partira sem nem se
quer me deixar, a semelhança daquele famoso conto de fadas, o sapatinho de
cristal como pista. Um prenome e nada mais. Quantas Luizas devem existir no
mundo? Após vasculhar toda a sede, veio à mente o lugar óbvio onde ela deveria
estar: o toalete. Lógico! Ela sentiu vontade de urinar, não deu pra segurar, e
saiu correndo. Se bem que faz tempo... Dirigi-me rapidamente pro lado onde
ficava o banheiro. Encontrava-se fechado. Sorte que a porta era de madeira.
Bati repetidas vezes. Chamei: “Luiza! Luiza! Luiza!”, não houve resposta.
Fiquei preocupado. Como os seguranças do Vila Nova estavam ocupados demais pra
me socorrerem, resolvi arrombar a porta. Com um chute o fiz. Foi então que a vi
por um instante, não mais que um instante. Ela estava de costa pra mim. De
repente seu cabelo louro começou a se transformar num longo rabo. Na cabeça
surgiram chifres. Braços, pernas e pescoço foram recobertos de pelo. A mulher
ficou com a aparência dum bode. O ar se empestou dum odor insuportável de enxofre.
Ela (ele) se virou pra mim com um aspecto horrível. Olhos esbugalhados. Soltava
fumaça pela narina. Rinchava como cavalo. Fiquei apavorado. Juro que me urinei
todinho! Comecei a clamar pelo sangue de Nosso Senhor. Congelado de pavor,
espiei nos olhos da criatura. Ele (ela) me reparou. Deu um berro de agonia, um
pulo para o alto e evaporou no ar. Só depois disso consegui me mexer do lugar.
O bicho que vi era o cramulhão em pessoa.
Após terminar o relato, o neto estava
sobressaltado, mas para não dar o braço a torcer gracejou: “Cramulhão, é? Além
da Jovem Guarda, será que ele também é chegado num batidão?”, e pôs-se a
gargalhar, sob a advertência do avô que o mandava ter cautela com o assunto. Lá
fora um carro buzinou. Os amigos do jovem tinham chegado. Ele deu um beijo na
mãe (que lhe rogou que retornasse cedo) e outro no avô. A este, disse:
–
Se preocupa não vô, se o capeta/cramulhão/demônio/Jurupari me aparecer hoje eu
xaveco também!
Na
festa, depois de exagerar no energético, o jovem, sentindo-se nauseabundo,
deixou a companheira dançando com um amigo e foi se sentar a um canto. Cinco
minutos depois, uma mão de unhas esmaltadas de preto o convidava para dançar.
Vendo tudo trêmulo, distinguiu levemente uma cor avermelhada no vestido da
pessoa que lhe arrastava para o salão. Ouvia-se na aparelhagem a música Closer
to Heaven, do DJ israelense Astrix. Em dado momento, enrolou seus dedos nas
madeixas da moça, percebeu que eram louras. Resolveu perguntar:
–
Gata, qual é mesmo o teu nome?
Ela
abriu um sorriso insinuante. Riu de canto de boca. Respondeu:
– Me chamo Luiza.