Gravura de Gustave Doré
Crianças normalmente possuem o medo irracional de que monstros
saiam pela porta de seus armários. A criança de que trataremos adiante possuía
um medo similar, de que o monstro entrasse pela porta do quarto e o ferisse,
mas esse medo não parecia irracional: o monstro vinha regularmente e o
machucava.
Todas as noites aguardava com pavor a chegada do monstro, e quando
não vinha, como hoje, era um alívio. Crianças normalmente tentam se defender
ligando as luzes, mas ligar as luzes não serviria de nada nesse caso, apenas
pioraria a situação. Preferia as luzes ligadas. Ao acordar pela manhã,
aliviado, arrumava-se. Os danos das agressões passadas não cessavam nunca, mas
havia um pequeno consolo de uma visita a menos. Escovava os dentes e vestia o
uniforme escolar. Descia para a cozinha e tomava a bênção da mãe, que estava
preparando um ótimo café da manhã e lhe tratava com profundo carinho. Não
possuía irmãos, então todas as atenções eram dedicadas a ele desde o início da
manhã. Terminava de comer e logo tentava dizer à mãe que não queria ir à aula,
mas ela parece que nunca o compreendia. A mãe tentava convencê-lo de que a
escola era importante, mas parece que o filho não a compreendia. Pouco depois
desceu o pai da família, pronto para levá-lo à escola e ir ao trabalho,
encerrando o ritual que se repetia todos os dias. Beijava a esposa e acariciava
o filho, levando-o ao carro para mais um dia de aula.
Era deveras um pai atencioso, carinhoso e exemplar, e o filho não
conseguia compreender a metamorfose que frequentemente acontecia; será que o
pai sabia das coisas que o monstro fazia com ele todas as noites? Pensava o
menino. Sua avó certa vez lhe contara, das lendas do norte, várias histórias de
homens que se metamorfoseavam em lobisomens, porcos, insetos e diversas outras
criaturas aterradoras. Poderia seu pai ser uma espécie de lobisomem? Também sua
mãe contara como um irmão fora possuído por espíritos demoníacos, ou assim
acreditava a família, enquanto o pai ria dessas coisas como sendo
“superstições”. Seria alguma força do mal a incitar a incredulidade do pai?
Também os desenhos mostravam como alguma química poderia transformar seres
inofensivos em monstros aterradores, e não era seu pai um farmacêutico? Tentou
falar:
— Pai...
— Sim, filho, o que há?
E a conversa não passava daí. Na escola sentava-se ao
fundo, mas não era dos mais ativos. Ficava apenas recolhido em seu canto,
independente de ser notado ou não pelos professores. Uma das professoras apenas
tentava fazer-lhe participar das aulas, sem sucesso. A falta de interação
social, aliada ao rendimento escolar precário, preocupavam a professora que já
havia convocado os pais para tentar descobrir os problemas que poderiam causar
essa apatia escolar. Chegou até a ser sugerido o acompanhamento psicológico da
criança, mas os pais se negaram; seu filho não era louco para tal. Voltando
para casa a criança recolhia-se em seu quarto. Não possuía amigos, e seus pais
trabalhavam a tarde inteira. Chegava a noite e o medo aumentava gradualmente.
Comia, tomava as bênçãos do pai e da mãe e voltava para o quarto. Com a luz
desligada observava a porta por horas sem grudar os olhos. O monstro apareceu
naquele dia.