CHARLIE, O PALHAÇO {GIROTTO BRITO}

“Não precisamos mais de você”, foi o que disseram. Depois de uma vida inteira alegrando corações, percorrendo países por todo o mundo, contando piadas e divertindo crianças e adultos, fora simplesmente descartado do Circo Abrazador. Não como os leões, camelos e elefantes que foram proibidos por lei, nem porque estava velho demais e incapaz de alegrar as pessoas, mas simplesmente porque achavam que palhaços não eram mais atrativos nos circos modernos.
Saiu do trailer do mágico, arrasado. O circo era sua casa, sua paixão, sua vida. Não tinha para onde ir e nem sequer sabia fazer qualquer coisa na vida que não fossem palhaçadas. As lágrimas escorriam pelo seu rosto fazendo borrar a maquiagem que levara horas para preparar e que não mais usaria. Sabia que àquela hora da noite todos estavam se aprontando para o espetáculo das 10. O mágico, os malabaristas, os músicos, os anões, as dançarinas e até Maria Luiza — a equilibrista que ele sempre amou, mas nunca foi correspondido. Todos estariam lá, menos Charlie, o palhaço.
Deixou-se jogar ao chão, escorando-se num monte de entulho. Aos prantos, fitava as luzes do circo que piscavam aleatoriamente em diversas cores, a grande e imponente tenda no alto da colina, os caminhões e trailers estacionados, as filas de pessoas comprando ingressos, as jaulas. Era realmente maravilhoso, um espetáculo divino.
A tristeza que sentia foi gradualmente dando espaço à amargura. A amargura foi, de repente, se tornando solidão. A solidão, por sua vez, foi transformando-se em medo. E o medo, cada vez mais intenso, de súbito se tornou ódio. Um ódio insano e incontrolável que fazia pulsar violentamente as veias do seu pescoço. Um ódio doentio por aqueles que o desprezaram, que achavam-no inútil, desnecessário. Todos eles.
Passou a mão no rosto para enxugar as lágrimas, borrando ainda mais a maquiagem, e levantou-se. Já estava quase na hora de começar o show. As arquibancadas estavam cheias, os pipoqueiros circulavam entre as colunas de espectadores, os músicos se posicionavam com seus instrumentos e o mágico se preparava para iniciar seu espetáculo. Seria um belo espetáculo. Charlie o assistiu quase que por completo, espreitando por debaixo das arquibancadas, entre os pés da plateia. O show chegara ao clímax e as pessoas gritavam e aplaudiam o número mais importante da noite, em que anões, bailarinas, malabaristas, equilibristas, o mágico e também o palhaço — lembrou-se com tristeza, deveria estar lá com eles — se apresentavam juntos ao som de 1812, de Tchaikovsky.
Chegara a hora. Charlie fechou todas as saídas da grande tenda despercebidamente e, com uma tocha — roubadas dos cuspidores de fogo —, começou incendiar a lona, correndo às gargalhadas ao redor do circo e ateando fogo em toda a circunferência. As risadas histéricas e doentias de Charlie se misturavam ao som da música e dos gritos de desespero da plateia que começava a perceber que aquilo não fazia parte do show . As labaredas cresciam e cresciam. A lona se incendiava por inteira, fazendo chover grandes gotas plástico em chamas sobre as cabeças enlouquecidas e desesperadas. Tentavam correr do fogo, mas o fogo corria até seus corpos. Iam todos queimando num espetáculo primoroso que iluminava a noite como as luzes de nenhum circo jamais poderiam iluminar.
Por fim, Charlie sentou-se no chão, escorando-se no monte de entulho de antes, e assistiu ao desfecho do seu maior espetáculo. Divertindo-se como nunca, soltava histéricas gargalhadas e aplaudia. Divertindo-se como todos que assistiram seus tantos números de palhaçadas pelos quatro cantos do mundo. Não conteve as lágrimas, levantou-se e aplaudiu de pé.