— O nosso pai
morreu.
Foi com uma ligação
e essa frase do meu irmão André que eu fui acordado naquele dia. Depois de
perguntar se ele sofrera muito e como nossa irmã estava, desligamos. Eu,
Carlos, há dez anos moro longe da minha família, mudei de Estado quando tinha
20 anos e uma péssima relação com meu pai. Eu o acusava de ter sido
responsável pela morte de nossa mãe quando eu ainda tinha 18 anos, André 8 e Ana 3. Eles
não viviam uma boa fase no casamento e meu pai a tinha convidado para passarem
um final de semana na fazenda de um amigo do trabalho, minha mãe primeiramente
tinha se recusado a ir por causa dos meus irmãos menores, mas meu pai insistira
e ela aceitara o convite. Na fazenda, minha mãe fora andar a cavalo com meu pai, o
cavalo que ela estava disparou e ela caiu batendo a cabeça, traumatismo
craniano. Ela morreu dois dias depois no hospital.
Eu, que já não
gostava das brigas que eles tinham e o culpava por elas, passei a chamar meu
pai de assassino. No início ele nada falava, apenas baixava os olhos ou ficava
com o olhar distante. Depois passou a querer me
reconquistar, se reaproximar, sem nunca efetivamente se defender de minhas
acusações, apenas dizendo “Você não sabe o que está falando”.
Meus irmãos, ainda
pequenos, nada entendiam e, nos dois anos que se seguiram à morte da minha mãe
e antecederam meu distanciamento, viram nossa casa continuar em conflito, só
que desta vez entre o irmão mais velho e o pai.
Arrumei emprego em
outra cidade e saí de casa, poucas vezes ia visitar meus irmãos. Estudei e
arrumei emprego em outro Estado, distante do meu primeiro lar. Meu pai às vezes
tentava me alcançar, telefonava, enviava e-mails e eu, embora já não o acusasse
mais de assassinato, era sempre frio. Tinha saudade dos meus irmãos, porém, em
dez anos, pouco fui visitá-los.
Soubemos da doença
do meu pai a pouco mais de um ano e meio, um pouco depois de eu ter passado uns
dias com meus irmãos. Câncer de próstata. Ele iniciou tratamento, fez quimio,
mas a doença não regredia, até aparecerem metástases em outros órgãos. Ele foi
definhando, enquanto meu irmão André tentava que eu fosse passar os últimos
momentos com nosso pai. Alegando muito trabalho e não contando que ele fosse
ter uma piora considerável e que a morte estaria próxima, eu fui adiando.
Mas... “Nosso pai morreu”... eu fui acordado com a voz chorosa do meu irmão.
Nosso pai tinha ido embora.
Tomando um café no
aeroporto, eu lembrava de quando eu era criança e eu e ele jogávamos futebol, de como minha mãe se irritava quando entrávamos sujos em casa, de como eu adorava
ajudá-lo a limpar nosso quintal, de quando ele ia me buscar na escola e me
deixava tomar sorvete antes do almoço. Meu pai era um cara bom, mas depois de
um tempo, botara na cabeça que minha mãe tinha amantes e o inferno começou. Ele
ficava louco, tinha surtos de ciúmes a cada vez que minha mãe saía de casa,
fosse até para ir ao mercado. Acho que foi por isso que minha raiva começou,
por causa da mudança no comportamento dele. Por isso eu o acusava.
Olhei no relógio. O
voo estava atrasado por causa do mau tempo. Eu não havia confirmado para meu
irmão que iria ao velório. Fiquei rodando pelo saguão do aeroporto. Vi algumas
famílias, vi alguns pais e seus filhos. A culpa tomou conta de mim. Não
lembrava da ultima vez que dera um abraço verdadeiro em meu pai. Não lembrava
da ultima vez que dissera que o amava. Eu o amava? Que espécie de filho eu era?
Finalmente o
chamado e pude entrar no avião. Algumas horas de voo e cheguei na minha cidade
natal. Peguei um táxi e fui para o local do velório. O cortejo já estava
saindo. Fui seguindo de táxi. Já no cemitério fiquei distante. O padre rezava,
meus irmãos estavam abraçados, minha tia os observava de perto. Fui me
aproximando. Os presentes começaram a notar minha presença. Ana e André deram
uma pausa no abraço e ficaram me encarando. Tirei os óculos escuros e toquei
levemente o caixão, percorri-o com o dedo indicador, parei na direção do rosto.
Todos estavam em silêncio. Pedi que abrissem o caixão. Toquei o rosto pálido e
frio do meu pai. As nuvens escureciam no céu. Comecei a chorar. Algumas pessoas
se aproximaram e tentaram me tirar dali, precisavam fechar o caixão e
enterra-lo antes da chuva. Fui tirado, não sem resistência. Quando baixaram o
esquife na cova fui tomado por culpa e loucura. Me joguei por cima do “meu pai”
como se o abraçasse. Os coveiros, que já começavam a usar as pás para encher a
sepultura de terra, pararam. A chuva começava a cair. Fiquei ali, deitado
sobre o caixão, encharcado. Já era quase noite quando o temporal passou e os
coveiros voltaram. Eu estava ajoelhado, sujo, usando as mãos para cobrir o
caixão com terra. Fui retirado dali. Passei alguns dias na casa da minha tia e
voltei para a cidade e estado que escolhera para fugir.
Todos os dias, ao
chegar em casa, eu olhava para a foto de um pai abraçando orgulhoso seu filho e
chorava. Eu morava sozinho em um pequeno apartamento. Passei a beber todas as
noites, acordava dormindo no chão da sala, da cozinha, sobre o vaso do banheiro.
Certa vez a minha
campainha tocou, já era tarde, chovia e eu não esperava visita. Dei um gole no
whisky e me levantei, cambaleei até a porta. Abri. Ali estava um homem que
primeiro desviou o olhar, depois fixou como se olhasse o horizonte, depois
sorriu... “Você não sabe o que está fazendo”... disse e entrou. Eu estava
imóvel. Por um tempo ele me observou. Eu estava despenteado, usando calça de
moletom e uma camiseta. Ele se aproximou devagar, tocou meu rosto, me abraçou.
Por cima do meu ombro pareceu se dar conta de algo. Afrouxou o abraço e foi até
a fotografia. Ficou um tempo em silêncio, em seguida se virou para mim com o
mesmo olhar da foto e disse “Também sinto saudades. Eu te amo!”