Essa é a quarta vez
que venho a esse maldito cemitério. Dessa vez, para enterrar meu último filho.
Primeiro foi o mais velho, logo em seguida minha esposa e o caçula, e agora,
para findar o pouco de força que ainda me resta, Felipe se foi. Tenho vivido a
dor, incessantemente, todos os dias desses últimos três anos.
Dessa vez eu estou
sozinho, ninguém viera me ajudar a sepultar meu filho, pois já não me veem mais
como antes. Os moradores desta vila passaram a acreditar que sou um sinal de má
sorte, um agouro, que carrego comigo o espírito da morte. De meus próprios
pensamentos é tolice falar, já nem sei mais quem sou: um homem destruído pelas
almas lhe tiradas, os amores roubados, o emprego destituído e a falta de
vontade de viver. Inacreditavelmente, a causa das mortes ainda não foi descoberta,
apenas minha família foi afetada por esse mal súbito.
Tudo começou no
inverno de 1989, quando eu e minha família nos preparávamos para as
festividades da estação. Helena, minha esposa, tinha saído e Henrique e Pedro estavam
na escola. Em casa, estávamos eu e Alexandre, meu filho mais velho, limpando e
organizando os livros da nossa pequena biblioteca quando, subitamente, ele
começou a rasgar as páginas dos livros e resmungar palavras sem sentido. A
princípio, achei que fosse algum tipo de brincadeira, mas logo percebi que seus
olhos tremiam freneticamente e sua pupila estava dilatada. De repente, ele
começou a comer as páginas soltas e eu, já tomado de pânico, tentava
desesperadamente impedi-lo. Tomei tudo que estava em suas mãos e o arrastei
para o sofá. Ele tremia e sua boca espumava enquanto repetia palavras
aleatórias como: Rua, Setembro e Cruz.
Corri para a sala de
jantar, onde estava o telefone mais próximo, mas não consegui completar a
ligação. Ouvi um estrondo na biblioteca e voltei correndo. Alexandre havia
quebrado o vidro da janela e cortado sua própria garganta. Fiquei em estado de
choque. Meu menino, que sempre fora tão alegre e são, de repente comete
suicídio durante um súbito ataque de loucura. Não havia explicação para aquele
ato de total demência.
Quando Helena chegou,
a polícia já realizava a perícia e desde esse dia minha esposa nunca mais foi a
mesma. Passou a estar sempre calada, depressiva e não mais me olhava nos olhos.
Em nenhum momento ela me culpou pelo que aconteceu, mas também não me absolveu
da culpa. Por um ano e cinco meses nossa família viveu silenciosamente, como em
um luto prolongado. Helena cada vez mais triste e reclusa no quarto.
Certo dia, quando
voltava de uma caçada, encontrei-me com Felipe na estrada. Papai! Papai! Mamãe está louca! — ele gritava e chorava. Imediatamente,
coloquei-o no carro e fomos para casa. Quando chegamos, avistei o corpo de
Pedro estendido no chão do pátio, com várias perfurações. O sangue escorria por
entre as frestas do piso de madeira e uma faca se encontrava jogada ao seu
lado. Tentei reanimá-lo, mas era tarde demais, já estava morto. Entrei então na
casa à procura de Helena, mas não a encontrei, liguei para a polícia que logo
chegou.
Depois de alguma busca,
minha esposa foi encontrada perto da casa, no lago, também sem vida. Afogada.
Abalado, passei
semanas tentando entender o que levaria Helena a matar nosso filho e depois se
matar. Depressão ou algum distúrbio psicológico, talvez. O fato era que só restávamos
eu e Felipe. E eu tinha que ser forte para cuidar dele sozinho após tantos
traumas.
Depois de algum
tempo, Felipe me contou que sua mãe, durante sua crise de loucura, pronunciava
três palavras repetidamente: Sete, Malta e Azul. Isso me deixou muito intrigado, pois Alexandre também teve o
mesmo comportamento antes de se suicidar.
A polícia já tinha me
interrogado diversas vezes, mas depois de alguns meses resolveram encerrar o
caso. Aparentemente concluíram que a culpada pela morte de Pedro não teria como
pagar pelo crime cometido, já que tinha se suicidado. No entanto, a população
da vila ainda tinham suas dúvidas quanto ao culpado e quando eu saía de casa
todos olhavam e comentavam sobre as mortes. Eu podia sentir os olhares que me
crucificavam.
Certo dia me veio à
mente as palavras ditas por Alexandre e Helena e comecei organizá-las de modo
que fizessem algum sentido. O único resultado plausível foi:
Rua
Sete de Setembro, cruz de malta azul.
Na vila eu sabia que
não havia nenhuma rua com esse nome, então fui até Marília, a cidade mais
próxima. Lá, encontrei a tal Rua Sete de Setembro e, depois de algum tempo
caminhando e perguntando, me falaram de uma pequena loja de penhores no fim da
rua que possuía em sua fachada um brasão com uma cruz de malta.
Chegando lá, uma Cruz
de Malta azul realmente acompanhava os dizeres talhados em madeira:
Frederico Pantoja - Loja
de Penhores
O que chamavam de
loja, na verdade, não passava de uma sala estreita e escura, abarrotada de
coisas velhas por todos os cantos. Prateleiras ocupavam praticamente todas as
paredes e nos fundos havia um velho balcão de madeira.
— Bem vindo à minha
humilde loja, senhor. No que posso ajudá-lo? Tenho relógios, livros e muitos
outros artefatos. — disse repentinamente um homem que se encontrava atrás do
balcão.
Aparentava ter cerca
de sessenta anos, cabelos grisalhos despenteados, suas vestes estavam velhas e
fumava um cachimbo bastante comprido.
— Não vim aqui à
procura de artefatos, senhor. Na verdade, procuro respostas.
Ele então se levantou
e olho para mim, analisando-me dos pés à cabeça. Intencionalmente, expulsou um
tanto de fumaça em meu rosto e se sentou novamente.
— Não vendo respostas
aqui, meu rapaz. E não conheço nenhuma loja que o faça.
A atitude rude
daquele homem me irritou, mas não deixei transparecer meu incômodo. Eu
precisava dele.
— Gostaria de saber
se o senhor conhece uma mulher chamada Helena Vasconcelos? Ela já veio aqui
alguma vez?
Quando pronunciei o
nome da minha esposa o velho levantou seu olhar em minha direção e deixou
escapar um leve e silencioso sorriso de canto de boca.
— Então quer dizer
que finalmente a dívida foi cobrada? Eu já estava cansado de esperar. — disse
com um suave sarcasmo.
— Esperar? Então o
senhor a conhece. O que minha esposa veio fazer aqui? E porque ela pronunciou
este lugar antes de sua morte?
Eu tinha muitas
perguntas a fazer e não conseguia organizar meu pensamento de forma que pudesse
explicar melhor a ele o que eu queria saber, de fato.
— Quando se pede um
favor ao Senhor da Morte, há que se
pagar um dia. Com juros.
Não entendi o que ele
dissera, mas continuei a ouvi-lo.
— Há alguns anos, sua
esposa veio até mim pedindo ajuda. Disse que seu esposo estava muito doente e
que não poderia perdê-lo. Algumas pessoas ouvem os boatos e acreditam neles. E
sua mulher acreditou que eu pudesse ajudá-la.
— Eu realmente
estive muito doente, à beira da morte, por causa de um acidente vascular
cerebral. Passei semanas em estado de coma no hospital aqui de Marília. Os
médicos já me consideravam um caso perdido.
— Sim. Sua esposa,
desesperada, veio até mim dizendo que faria de tudo para que você fosse salvo.
Ela ofereceu sua própria vida em troca da sua.
Sempre fui um ateu
cético e ainda estava tentando entender toda aquela história e por mais que
minha razão duvidasse daquilo tudo, meus sentimentos eram levados a crer.
— Eu sou um velho intermediador do destino. Faço tratos e
acordos, redijo contratos, mas não sou eu quem cobra pelos favores prestados.
Quando Helena ofereceu sua própria vida em troca de sua cura, ela sabia que um
dia isso seria cobrado. O contrato era claro.
— Contrato? Do que
está falando?
O velho se levantou
novamente e subiu numa pequena escada para alcançar uma caixa no alto de uma
prateleira.
— Aqui está — disse,
abrindo a caixa e me mostrando um frasco de vidro com um dente dentro — Esse
dente selou o pacto de sua esposa. Uma vez feito, não há como voltar atrás.
Reparei que na caixa
estava escrito o nome da minha esposa e tinha uma marca de sangue na tampa.
— Está querendo me
dizer que o senhor ofereceu um pacto demoníaco para minha esposa para que ela
trocasse sua vida pela minha enquanto eu estava doente? Isso não tem cabimento!
— Eu não ofereci. Ela
veio até mim e fez o pedido. Como eu disse, sou apenas um velho intermediador.
— Mesmo que eu
acreditasse em você, isso não explicaria o fato de dois filhos meus terem
morrido também.
— Meu caro homem.
Vejo que você resiste à verdade. Mas o que aconteceu não poderá ser mudado. O Senhor da Morte cobra caro por seus
favores, como eu disse antes, com juros.
Não acreditei no que
dissera o tal Frederico Pantoja. Agradeci a ele por ter cedido um pouco do seu
tempo para mim e fui embora.
Dirigi cerca de duas
horas. Uma chuva intensa caía e quando me aproximei da vila percebi que parte
dela estava sem energia. Em frente minha casa, somente as luzes das sirenes
refletiam por entre as árvores. Alguma coisa havia acontecido.
O último dos três
filhos estava morto. A vizinha que tinha ficado responsável por ele enquanto eu
viajava relatou que ele simplesmente enlouqueceu: subiu em uma árvore no
quintal da casa e se agarrou nos fios de alta tensão.
♠♠♠
A vida me reservou
esse triste destino e infelizmente não pude salvá-los, pois descobri tarde
demais o universo sombrio que existe além do que eu acreditava. E agora, aqui,
sentado no túmulo do meu garoto, cogito a possibilidade de Frederico ter me
dito a verdade e amaldiçoo minha própria vida, que foi a causadora desse
maldito comércio de almas.
Ilustração de Girotto Brito }