Eu
lavo as mãos sujas de sangue e acredito que sou um novo homem, melhor, mais
civilizado, senhor de mim em todas as coisas, até mesmo nas mínimas. Mas este
sentimento dura um instante, tão ínfimo que não pode ser contado em termos de
tempo, tal como o conhecemos. Então eu choro, e preciso de alguns minutos para
me recompor. Sou complexo, labiríntico, eu sei, mas não posso fazer nada, pois
muitas vezes pareço apenas um mero espectador de mim mesmo.
O
sangue não quer sair. Esfrego embaixo das unhas e me sinto impaciente, apesar
de saber que isso sempre ocorre. Abro mais a torneira e o fluxo de água
torna-se mais intenso, molhando-me o ventre rente à pia.
Enquanto
tento me limpar, tenho o péssimo hábito de olhar para o espelho, como se
aguardasse algo. Algo estranho ocorre. Vejo-me, mas não a mim, e sim outra
pessoa, similar, com alguns traços que me são desconhecidos. Esse outro sorri,
satisfeito. Parece ter saciado uma fome de dias. Mas seus olhos, vermelhos,
traduzem uma solidão inquietante que diz tanto em tão pouco tempo. Como de
costume, prendo a respiração e a imagem no espelho asfixia lentamente,
entretanto, ela não morre, torna-se mais sorridente e exibe dentes amarelados e
pontiagudos. De alguma forma incomum eu sinto pena dessa outra pessoa que sou
eu. Se pudesse abraçá-la... mas isso é
perigoso. E ridículo. Não quero contato comigo sob o risco de me perder outra
vez.
Examino
as mãos. Estão precariamente limpas. Não me importo, já dormi assim várias
vezes, o que me assusta, mas também fascina. Mostro ao reflexo no espelho as
minhas unhas sujas e o outro bate palmas, como uma criança que acabou de
receber um caro e sofisticado brinquedo.
Desligo
a luz do banheiro. Saio. O quarto está impregnado de um odor doce, enjoativo.
Esse seria o momento perfeito para abrir as janelas, mas não o faço, pois temo
perder este instante de satisfação diante da minha obra. Sim, sou um artista, e
me considero brilhante, mas ignorado pelo grande público. Isso me aborrece, mas
não a ponto de vociferar contra o mundo. Não sou tolo a este ponto. Na verdade,
sou centrado e amante da boa música, das belas formas de representação.
Alguém
me chama. Olho ao redor e sei que estou sozinho. Entretanto, continuam chamando
meu nome. A voz vem do banheiro, previamente trancado, por motivos que me são
absolutamente conhecidos. Sinto medo. E todo meu corpo é invadido por um torpor
parecido com um lento desmaio, de quem está bêbado e resiste para se manter
acordado.
Sou
chamado. Agora a voz se mostra mais angustiada, o que me entristece, uma vez
que sou melancólico e busco, sempre que posso, me afastar das coisas tristes e
desesperadas. Penso em responder, mas tenho consciência de que estou sozinho no
quarto e que, agindo de forma incondizente com tal estado, estarei em uma clara
situação de delírio. Mas isso é ridículo. Sou um homem que fala quatro línguas,
sei tocar piano. Em uma sexta chuvosa, compus uma pequena sonata que falava
sobre bocas risonhas, ventres largos e seios delicados e sedutores.
Tapo
com as mãos sujas os ouvidos.
Estudei
nas melhores escolas. Na universidade fui um dos melhores alunos do curso. E
como fui parabenizado! Ainda tenho ali, na gaveta, as medalhas que ganhei.
Algumas, douradas, trazem meu nome escrito. Ah, e como a vida era melindrosa
naqueles dias difíceis, porém necessários. Hoje, se quiser comprar pardais de
ouro, posso fazê-lo, uma vez que conquistei um lugar na sociedade que é para
poucos. Sou, portanto, rei de mim...
A
porta do banheiro abre bruscamente. Tremo. Tento me esconder perto da cama, em
um ângulo incomum entre o colchão e o solo frio. Pergunto quem é. Das sobras
surge uma criatura horrenda. Suas mãos, grandes e vermelhas, abrem-se em
garras. Os olhos, negros, refletem um pesadelo abissal que finjo desconhecer.
Do canto da boca arroxeada escorre um líquido viscoso, que se torna mais e mais
abundante, criando ao redor do monstro uma grande poça repulsiva.
Sinto-me
ameaçado. Por isso avanço, na tentativa de me defender. Alcanço a garganta da
coisa, que me arranha o rosto, o peito, os ombros. Sinto uma grande dor, mas
não posso desistir, minha vida depende unicamente do meu esforço. Luto
desesperadamente. Penso nas pessoas que amo e que dependem de mim. Não posso
desistir, se o fizer sei que, de alguma forma fantástica, serei sugado para
dentro da criatura, que, para meu espanto, sufoca diante da minha força.
Sinto
a vitória. Regozijo-me. Hoje, ainda não será meu dia. O monstro tomba,
convulsionando. Gargalho, por alguns minutos. Sei que todo meu esforço não foi
inútil. Estou eufórico e não consigo parar de rir. Fecho os olhos e prendo a
respiração. Durmo.
Acordo
horas, talvez dias depois. Ao meu lado, um cadáver, frio, inerte,
irreconhecível. Serei eu?
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* Mauro Lopes Leal
Natural de Belém do Pará, é graduado em Filosofia e Letras, especializando-se em Estudos Linguísticos e Análise literária pela UEPA, bem como o mestrado em Letras pela UFPA. Seus estudos acadêmicos abordam especificamente os autores russos, trabalhando a relação entre filosofia e literatura.