SAMARA



SAMARA

***

Gostava do fígado mais que tudo. Não que os outros órgãos, as outras partes do corpo, fossem ruins. Gostava de chupar as grossas veias do coração, sim, mordicar o tecido esponjoso dos pulmões; mas o fígado, ah! o fígado... Tinha um sabor especial. Talvez fosse a consistência quase pastosa, a cor, talvez. O certo é que saboreava cada pedaço. Era como se por meio daquele órgão pudesse sentir todos os sentimentos do seu dono, todas as suas mais íntimas preocupações, seus segredos, seus medos, ah! como saboreava o medo. Por isso o fígado era sempre a última parte, um doce especial mantido longe dos olhos ávidos das crianças enxeridas, ou dos vermes da terra. Se pudesse o deixaria intacto. Mas sabia que assim ele acabaria estragando... Tinha medo disso. Medo de perder a melhor parte. Então o comia. Saboreava, melhor dizendo, imersa num estágio catatônico de puro êxtase.
Às vezes até gozava.

***

Espia o homem amarrado à cama. A boca dele vedada com supercola. Os olhos, arregalados, são a mais nítida expressão do terror. Ele respira acelerado, o peito subindo-descendo-subindo-descendo convulsivamente. Está vivo, pelo menos. Isso quase soa confortável. Soaria, se a situação envolvesse lutar pela vida, quando agarra-se a qualquer resquício de esperança. Mas não agora. Não quando se sabe que a morte é a certeza. Ele sabe que vai morrer. Mas não ainda, pelo menos. Esperança? Não. Ele sabe que não morrerá antes que ela devore parte do seu corpo. A primeira parte foi o pênis, cortado assim que ele ejaculou pela terceira vez. Ela lambia o sangue e o esperma enquanto ele se contorcia no chão de dor... Até que apagou. Quando acordou estava amarrado àquela cama, a boca completamente vedada. Ao pensar nisso, ele se contorce na tentativa inútil de escapar. Não vai escapar. Sabe disso. Sabe porque já fez as mesmas tentativas milhares de vezes antes. Sabe porque aquele cheiro forte de desinfetante quer, inutilmente, esconder o cheiro putrefato de decomposição que entranha pelas narinas. Sim, são cadáveres. Sabe disso. Sabe porque os ganchos na parede do outro lado estão sujos de sangue negro ressequido. E não eram peças de boi que estavam penduradas ali, tinha certeza. Quase podia imaginar-se ali, ainda vivo, agonizando, um enorme gancho o suspendendo pela clavícula...
Ela aproximou-se.

***

O pai dizia que ela era doente, porque, quando menina, gostava de caçar passarinhos no quintal pra depois despedaça-los nos dentes e come-los crus, o sangue escorrendo pelos cantos da boca... Não lembra exatamente a sensação de ter aquelas frágeis criaturas se debatendo inutilmente na suas mãos sujas. Mas recorda do líquido quente que jorrava das suas entranhas. Não entendia como uma coisa, assim, tão boa, poderia ser algo ruim, ou porque ela seria doente por isso... Até que um dia, já quase adolescente, enquanto o pai mais uma vez saia do banheiro fechando o zíper da calça e a deixando encolhida num canto, tremendo e dolorida, deu-se conta de que era realmente doente. Doente pelo fato de maltratar animais indefesos, que nunca lhes fizeram mal... Mas foi também nesse dia que se curou. Foi nesse dia que experimentou pela primeira vez a carne humana. E não gostou. A carne do pai era dura, ressequida; o fígado, então, era a pior parte; exalava um forte fedor de álcool, muito provavelmente o órgão perdera há muito a capacidade de desintoxicação. Talvez por isso mesmo nutria esse gosto estranho pelo órgão...

***

Ele estremeceu.
Onde aquele mostro estava escondido? Não notara. Por Deus sequer imaginava uma coisa dessas.
Como?
Ela trazia uma pequena faca. Um sorriso estranho nos lábios fechados. Os cabelos não estavam mais transados. Havia sangue ao redor da boca dela.
— E aí, benzinho? — disse.
Ele se remexeu.
Oi, coração! — ela respondeu por ele, tentando imitar uma voz masculina, mas a voz estridente dela dava um teor bizarro.
— Tá tudo bem, amor?
Tá sim! — e riu. Gargalhou.
Era louca, ele tinha certeza. Assim como tinha certeza que não poderiam ouvi-la. Ninguém poderia ouvi-la. Não ouvira outro som que não fosse a voz estridente dela! Era provável que estivessem no porão da casa, ou num quarto-cozinha-sala do terror, ou sabe-se lá onde. O certo é que o mundo parecia não existir mais...
— Sabe o que nós vamos fazer hoje, amorzinho?
[a quantos dias estava ali? nem lembrava mais...]
Não, meu amor
— Brincar! Você quer brincar comigo?
Ela riu.
Ele riu pela boca dela:
Quero!
Aproximou-se do rosto dele. Ele respirava acelerado. Pela primeira vez pôde olhar novamente no fundo dos olhos dela, completamente negros. Não dissera que a escuridão daqueles olhos tinham um mistério a ser explorado? Por um momento ele viu o negro da íris se expandindo pela parte branca dos olhos, como raízes crescendo em selvageria... As raízes romperam os olhos e se derramaram pela face dela... Até que os olhos dele se arregalaram. Piscou. Ela sorria, um sorriso sangrento, os olhos negros, a mão empurrando a faca pelo flanco esquerdo dele, lentamente...
— Você gostou de me foder, amor?
Ah, amor, gostei sim, você é uma vadiazinha
— Não me chame de vadia! — e a faca entrou mais fundo. Ele se contorceu. Ela sorriu. — Tá melhor assim?
Tá sim...
E a escuridão veio. A dor foi embora.

***

            Lembrava vagamente do som de um piano (ou talvez fosse um toca-discos).
Não, não tinham piano, nem toca-discos, nada. Ouvia do quintal. A vizinha que morava ali, uma professora há muito aposentada, tocava (ou ouvia).
E ela ouvia, atentamente, as melodias, cada nota...
É a melhor lembrança que tem daquela época. O som... As tardes... O cheiro de café. Naquela época ainda tomavam café às tardes. A mãe ainda não havia partido com o irmão menor.

***

Ele acorda, mas os olhos estão por demais pesados para abri-los. Permanece assim. A respiração lenta, doida. No silêncio uma torneira pinga. O pingar é lento, como se cada gota lutasse para se manter presa à torneira. O som é pesado, o líquido parece grosso. E está em algum lugar ao longe
pinga ploc-ploc-plo...oc
tão perto, está tão perto... Ele pode sentir. Sim, sentir, não apenas ouvir. Ele sente os pingos, sente a torneira.
Abre os olhos.
No chão uma poça de sangue vai aumentando a cada gota de sangue que se esvai. Uma tira de carne desaparecera dali.
Chora. Mas não vai adiantar, sabe disso.  
Para de chorar. Apura os ouvidos. Conhece aquele som, as melodias. Chopin?
Ela abre a porta. O celular na mão toca a sinfonia. Ele arregala os olhos, antecipa o pior. É o pior, sabe disso; o olhar vago dela diz que é o fim. Ele fecha os olhos. Só deseja que seja rápido. Mas o pensamento que vai ser devorado o aflige...
O som é interrompido bruscamente. Ele levanta a cabeça. Ela colocou fones de ouvido. Feito uma boneca sem expressão sai pela cômodo como se estivesse valsando, os braços abertos abraçam um ser imaginário. O demônio, ele pensa. Ela não ouve ele se debatendo. Não ouve nada. Vai até a parede oposta. Confere se um dos ganchos está bem seguro, chega a se pendurar num deles. Não cede. Está firme. Aguenta. Para por um momento como se avaliasse as opções. Vai até a mesa e pega uma grande faca de açougueiro — o cabo, antes branco, agora é rubro e negro, onde o sangue há muito coagulou. Vira-se para ele. Sorri.

***
[Dois meses depois.]

O homem checa o relógio. 20h:40min.  Passa as mãos nos olhos. Afrouxa a gravata. Precisa de ar. Precisa de um cigarro, de uma cerveja gelada. Precisa foder. Batem à porta:
— Doutor — a secretária mete a cara pela abertura — a reunião amanhã com o presidente do sindicato vai ser às nove, mas não poderei vir, tenho uma consulta, algum problema?
Ele avalia a secretária. Pondera dizer a ela que não haveria problema, contanto que ela o aliviasse ali mesmo, em cima da mesa, o escritório já não estava vazio mesmo? Olha pela janela.  A avenida em frente estava surpreendentemente pouco movimentada.
— Doutor?
— Ah, sim, claro; pode deixar. Obrigado, Dani, pode ir. Boa noite.
Ela se despede e vai embora.
Custava ter jogado o charme de sempre? Não funcionara das outras vezes?
Apaga as luzes e desce.
Precisava relaxar. A esposa não era uma opção. Precisava de uma coisa... diferente.
Atravessa a rua, destrava o carro, entra. Liga o veículo e abaixa o vidro. Do outro lado, na parada de ônibus, uma moça solitária espera por um coletivo. Ele pondera. Sorri. Aproxima-se.
— Boa noite, senhorita, aceita uma carona? É perigoso esperar ônibus por aqui uma hora dessas, ainda mais sozinha...
Ela tira os fones de ouvido e sorri acanhada. Avalia as opções. Levanta-se e entra no caro timidamente.
— Alberto — ele diz estendendo a mão.
— Samara... — ela responde, tímida.
— Muito prazer, Samara; o que você estava ouvindo, posso saber?
Ela sorri, dessa vez um sorriso completo:
— Chopin.



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RELATOS {SAMANTHA DE SOUSA}


Se há lugares cheios de fascínio e com um vasto imaginário sobre fatos sobrenaturais, estes lugares certamente estão nas regiões mais afastadas das grandes cidades. Estou me referindo a cidades interioranas, o Brasil está cheio delas e de suas lendas e superstições. Os relatos que apresentarei a seguir são baseados nas vivências dos meus pais, histórias que eles contavam nas reuniões familiares, principalmente quando insistíamos em fica acordados até tarde ou quando faltava energia... ah, aquelas horas a luz de vela ouvindo histórias de assombrações serão inesquecíveis, até porque devo a elas inúmeros pesadelos e insônia, mas eram fantásticas! Meus pais passaram a maior parte da vida no interior do Nordeste, minha mãe no Maranhão e meu pai no Piauí, e presenciaram ou ouviram das estórias de família muitas coisas estranhas. Forçarei um pouco a memória para lembrar-me de algumas desses acontecimentos. Não divaguemos mais, pois. Há muito o que se falar por aqui!

Relato 1: A visagem no meio do caminho

Isto aconteceu com um tio meu, na verdade. Quem conta esta história é meu pai. Diz ele que isto se passou num lugarejo chamado Lagoa do Gato, quando seu tio voltava da roça a cavalo. Naquela região era comum que as casas e plantios fossem bem distanciados, o que obrigava seus moradores a cruzarem longos caminhos desertos até chegarem a seus destinos. Como era um caminho rotineiro, meu tio pouco se preocupava com os perigos da região, mas certo dia ele passou por um dos episódios mais sombrios de sua vida. Meu pai conta que este tio demorara a chegar em casa, e quando chegara estava mais branco que o leite, o homem mal conseguia se manter em pé, tampouco falar. A família ficou sem entender o que havia acontecido até ele recobrar as força e narrar sua experiência. Tal qual fazia todos os dias, ele cavalgava de noite rumo a sua casa, mas no meio do caminho surgiu uma aparição, a princípio ele não se incomodou com aquilo, parecia mais uma “toiça” de folhas e galhos despencados de uma árvore, seu cavalo, entretanto, travou no mesmo instante. Ele tentava fazer o cavalo andar, mas o animal só andava para trás e relinchava, foi então que meu tio começou a perceber que havia mesmo uma força estranha, pois o pavor também tomou conta dele. O vulto às vezes parecia se mover, e por alguns momentos pensou ter visto olhos brilhando na criatura. Depois de muito insistir com o cavalo, meu tio deu-lhe dois chutes na barriga e o bicho correu desenfreado, atravessando o caminho da visagem, o cavalo não parou de correr até chegar em casa e nem precisara ser guiado, parecia já saber exatamente par onde ir.

Relato 2: Alma pagã, alma penada

Minha mãe conta que ela mesma presenciara este fato. Quando criança, não recordo se em Zé Doca ou em Caxias, minha mãe, seus irmãos e minha avó moraram numa casinha bem isolada das demais. No caminho entre a cidade e a casa, passavam por um cemitério, minha mãe relata que todas as vezes que passavam por lá era possível ouvir o choro de uma criança. Certo dia, em companhia de uma outra moradora da região, minha mãe e minha avó passavam próximo ao tal cemitério e a mulher lhes explicou o que havia acontecido: tratava-se de uma alma penada, uma criança que morrera pagã. A mulher falou ainda que para que aquela alma tivesse descanso e parasse de atormentar o mundo dos vivos, era necessário batizá-la. Assim o fizeram. Minha avó e a mulher organizaram o material para o ritual, água benta, velas, orações e outros artifícios religiosos. Durante o ritual, o choro parecia ficar cada vez mais alto, mas fora enfraquecendo até desaparecer. Batizaram a criança. Depois disso, minha mãe conta que nunca mais ouviram o choro do bebê.

Relato 3: Papai?

Meu avô materno certamente é a figura mais misteriosa da família, tanto porque ninguém mais sabe dele desde há muito tempo (eu nem cheguei a conhecê-lo), quanto por causa das diversas histórias assombrosas que rondam sua existência. Minha mãe conta que ele era um homem muito ruim e que raramente tinham paz quando ele estava por perto, e ao mesmo tempo em que ele tinha muita sorte para juntar pequenas fortunas, a família estava sempre na miséria, pois ele perdia tudo numa velocidade assustadora. Certa vez meu avô construiu sozinho  e em pouquíssimos dias uma casa imensa, ele se isolara na construção e só apareceu quando a terminou, contudo, logo a vendeu e desapareceu novamente, abandonando a família como já era típico. Mas vamos ao primeiro relato sobre o meu avô! Este, minha mãe mesma vivenciou. Ela conta que, quando criança, vira meu avô transmutado em demônio. Ela dormia e sentiu, de repente, a sensação incômoda de que alguém olhava para ela. Quando abriu os olhos, viu seu pai apoiado no punho da rede olhando para ela, seus olhos, entretanto, não eram humanos, mais pareciam olhos de mosca-varejeira, eram gigantes e bizarros. Quando ele percebeu que ela acordara, afastara-se da rede rapidamente. Minha mãe chamou por ele, mas ele desapareceu no outro cômodo.

Relato 4: Nas mãos do Diabo

Este relato é novamente sobre meu avô, é, sem dúvida, o que mais me assustava. Minha mãe conta que meu avô era perseguido pelo Diabo e que, pelo menos em dois momentos, a criatura se manifestou para ele. Na primeira vez, foi quase um pesadelo, ele dormia na rede e acordou gritando: “Sai daqui, Satanás!” Ele deu um morro tão violento na parede que sua mão passou dias inchada. A segunda vez foi mais aterrorizante, tanto para ele, quanto para quem presenciara a situação. Ele dormia na cama e alguma coisa começou a puxá-lo, ele era arrastado para debaixo da cama e por mais que puxassem para fora, uma força parecia sugá-lo, ele dizia que era o próprio diabo o levando para o inferno. Os filhos conseguiram retirá-lo de lá, todos muito assustados. Muitos ouros acontecimentos bizarros se passaram nesta família e, entre muitas idas e vindas, meu avô desapareceu, até hoje não sabemos se ainda vive.

Relato 5: Samantha?

Esta é a última história e é a mais recente também. Aconteceu já em Paragominas, lugar onde passei minha infância, mas aconteceu já na minha juventude e foi um episódio que se repetiu duas vezes. Minha mãe conta que vira uma garota idêntica a mim, mas não era simplesmente uma sósia e, certamente, era nem era humana. A primeira vez que aconteceu foi dentro de casa, minha mãe me vira saindo do banheiro e jogando a roupa suja na máquina de lavar, chamou por mim e eu respondi, eu estava no banheiro ainda e nem havia passado perto da máquina. A segunda vez foi na rua. Ela tinha o costume de me esperar chegar da faculdade, ela ficava no portão e quando me vira descendo a rua, entrou, contudo, não era eu quem descia a rua. Eu só chegaria algumas horas depois. Era impossível ter confundido outra pessoa comigo, pois além das minhas características peculiares – eu era muito magra, tinha cabelos longos e quase brancos de tão loiros – a garota que ela vira estava vestida exatamente igual a mim, era a mesma roupa que eu usava naquele dia. Eu podia até duvidar dessa história, mas para piorar, a criatura apareceu em uma fotografia minha: eu fotografei de costas o comprimento do meu cabelo, então vermelhos, e uma fisionomia esbranquiçada apareceu no primeiro plano da foto, os contornos formavam exatamente meu rosto. A fotografia, infelizmente, desapareceu nem sei como e até hoje não sabemos como explicar aquilo!
***

São tantos os mistérios que rondam minha família, que pode até assustar pertencer a ela! Hoje eu não tenho mais medo deles, conto-os com certo ar de divertimento. E digo mais, não sigo religião alguma, nem sustento fé em divindades, mas que há muitos mistérios entre o céu e a Terra, disso eu não duvido!

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ZONA MORTA I {SAMANTHA DE SOUSA}


Acordaram numa casa estranha. Olharam-se, não se conheciam nem se reconheciam. Tentaram falar, mas não havia voz. Estavam mudos. A casa cheirava a mofo. Era velha, escura e suja. Teias de aranha pendiam por todo o telhado e paredes. O assoalho rangia a cada movimento, parecia que nunca fora pisado antes, e os únicos passos naquele carpete de poeira eram os seus, nem ao menos havia sinal de como entraram lá, os únicos passos eram aqueles onde estavam. As frestas entre as tábuas das paredes deixavam entrever: escurecia. O lá fora era morno e alaranjado. Tentaram abrir a porta, mas não havia porta, nem janela. Era uma grande caixa de madeira. Os olhos olhavam desesperados. Como? Perguntavam. Precisavam acordar, pois nada daquilo poderia acontecer na vida real. Um deles se jogou contra a parede, talvez conseguisse derrubar uma das tábuas, mas eram tão sólidas quanto concreto. O outro procurava alguma saída secreta em vão, conseguia apenas emaranhar-se nas teias de aranha. Aranhas andavam por seu corpo, ele as esmagava, mas elas não morriam, corriam e desapareciam entre o chão e a parede. Um grito fazia doer a garganta, mas não saía. Sentia-se sufocar, como se o ar lhes fugisse dos pulmões. Caiu de joelhos, rogava mudo a um deus que lhe libertasse do pesadelo, o primeiro soldado a abandonar a guerra. O que sobrevivia de pé descobria móveis velhos entre a poeira, era-lhe tão familiar. No álbum perdido na gaveta: pai, mãe, irmã e ele, que também era o outro. Via-o morto, sufocado em seu próprio silêncio. As mãos perdem o significado, solta o álbum e as fotografias se espelham pelo chão. Também morreria, e logo. Escureceu e as paredes pareciam se estreitar. Queria desistir, mas não sabia como, não tinha um deus, não saberia se ajoelhar. Olha ao redor, tudo é sombra e vulto, as fotografias se apagaram, o corpo apodreceu, seus passos desapareceram. Pelas frestas da parede podia ver: lá fora, um menino catava estrelas numa poça d'água.

A CRIATURA {GIROTTO BRITO}



“Ânsia das horas místicas e aflitas,
De horas amargas das intermináveis
Cogitações e agruras insondáveis
De febres tredas, trágicas, malditas.”
Trecho do poema “Ocasos”, de Cruz e Souza.


Naquela época, vivia dias tristes e solitários. Morava num cubículo numa dessas vielas da cidade velha, no segundo piso de um casarão antigo perto da Praça da Sé. Era um cômodo apenas, muito abafado, de paredes mofadas e teto baixo. Além da cama e uma carcomida escrivaninha abarrotada de livros, a porta de entrada e uma janela, nada mais. Lá morei por treze meses, os mais difíceis e atormentadores meses de minha vida.
Na segunda semana após minha chegada, adoeci. A princípio um leve resfriado, febre, coriza e muita dor de cabeça. Depois vieram a tosse seca, a falta de ar, o cansaço e uma súbita falta de apetite que me fazia definhar um tanto a cada dia. Tuberculose, foi o que me disseram.
O temor da enfermidade me levou a um estado depressivo, talvez crônico. Isolei-me naquele quarto de subúrbio por meses, bebendo água da torneira e comendo — quando raramente vinha a fome — enlatados de carne e feijão que havia estocado. Do corpo se apossara uma fraqueza infinita e eu dormia, dormia muito, dormia o dia inteiro. Era nas madrugadas que um pouco de disposição me invadia a alma e trazia resquício de ânimo para me levantar. Nos livros já nem mais tocava. Quando acordado eu apenas sentava na beirada da cama, de frente para a janela, e ficava observando os movimentos noturnos nos becos, até onde a vista alcançava. Era o que eu fazia nas madrugadas, sentava, tossia, escarrava e observa os bêbados, cachorros, bandidos e prostitutas.
Certa noite, vi um gato caminhando pelos telhados dos velhos casarões. Um gato branco, de cauda grande e volumosa como um espanador. Foi pulando de uma casa à outra até chegar bem próximo da minha janela. Era um maravilhoso felino, de olhos claros e brilhantes, e uma pelagem de tamanha brancura que parecia iluminar a noite mais que a própria lua cheia. Por um instante ele ficou ali, parado, me observando, e eu a ele. Havia algo de especial naqueles olhos, algo de anormal. Eram terrivelmente penetrantes, mas causavam uma sensação bastante agradável. Coloquei um pouco de carne enlatada no batente da janela e esperei que ele viesse, mas não veio. Depois de ameaçar algumas vezes uma aproximação, o felino saltou para outros telhados e foi embora.
Depois dessa noite, passei a ter sonhos cada vez mais estranhos e sombrios. Pesadelos que me fazia acordar banhado em suor e num estado alucinado que ainda hoje não sei ao certo se tinha alguma relação com a visita inesperada daquele felino de olhos enigmáticos ou se foi apenas efeito das febres tão comuns da doença.
Semanas se passaram e a doença me deixara ainda mais fraco, tísico e taciturno. Alimentava-me muito pouco e, mesmo quando acordado, já não sentia mais vontade de levantar. Sentia que a morte estava próxima e um terror anômalo me provocava terríveis pesadelos e suores noturnos. A cama, os lençóis, minhas roupas, ..., tudo fedia. Eu definhava como um indigente num quartinho esquecido do mundo que eu ignorava. Ninguém, absolutamente ninguém em todas aquelas semanas, bateu em minha porta para saber como eu estava. Eu não estava bem. Talvez já estivesse morto e não tenha sido capaz de perceber.
Não, eu não estava morto. Estava ainda bem vivo. Vivo o suficiente para presenciar a cena mais horrenda e tenebrosa de minha vida medíocre.
Numa daquelas noites, acordei acometido por um súbito ataque de tosse e falta de ar. Tonteei, senti vontade de vomitar e ainda com a visão embaçada pude ver claramente o magnífico felino sentado no batente da janela. Ele me olhava e não desviava o olhar. Apoiei-me na cabeceira da cama e fechei os olhos por alguns segundos. Abri-os. Ele ainda estava lá, com seus olhos fixos e penetrantes, como se quisesse agora minha aproximação.
Peguei o copo com água de cima da escrivaninha e dei alguns goles. A tonteira diminuiu e busquei forças do âmago tuberculoso para um arraste até a extremidade oposta da cama, onde ficava a janela. Meus músculos relutavam em obedecer meus comandos, tamanha fraqueza. Mas eu cheguei. Sentei na beirada da cama e olhei de bem perto a beleza esplendorosa daquele animal. Para outras pessoas, talvez, poderia ser apenas um gato qualquer, mas não para mim que vivia há meses trancado naquele muquifo. Ele era vida. Era beleza. Era arte. Era, talvez, presságio.
Admirei-o por pouco tempo até perceber o que o felino tentava me dizer. Ele não estava ali por acaso e, creio eu, não era um animal qualquer. Seria um espírito mensageiro, um emissário a anunciar, por onde suas patas tocassem, que algo terrível estava por vir. E veio.
Quando meus olhos se desviaram daquela brancura majestosa, vi, lá em baixo, no beco mal iluminado, uma estranha e amedrontadora criatura. Vagava pela rua, dardejante, sob a luz pálida da lua minguante. Não era homem, não era bicho, não era nada! Nada que se parecesse com qualquer coisa que eu já havia visto. Sobre si, uma longa e esfarrapada túnica cobria malmente seu corpo forte e horrivelmente deformado, arrastando no chão a cada passo. De repente um frio inexplicável foi adentrando o quarto e o felino, aos saltos, desapareceu na noite.
A coisa se arrastava na calçada, silenciosamente, em direção à esquina. Da outra rua, pude ver, vinha pelo menos uma dúzia de homens, alguns bêbados, de encontro à criatura. Meu corpo estremeceu ao imaginar o encontro deles com aquilo em alguns segundos. Pensei em gritar para avisá-los, mas não tinha forças para isso. Aproximei-me da janela. Meus dentes roçavam uns nos outros nervosamente e, como jamais imaginei que pudesse existir tamanha monstruosidade, presenciei aquilo acontecer.
Quando viram a criatura na calçada, todos corajosamente se armaram para capturá-la. Avançaram com paus, pedras, punhos e facas, mas não valeram de nada. A coisa arrancou-lhes os corações com uma guinada e num segundo estavam os homens caídos ao chão com os peitos abertos. Para onde foi tal criatura não sei ao certo, sumiu na penumbra dos becos desertos. Sob o céu noturno enluarado, a rua tornou-se rubra: ensanguentada. Fiquei atônito, pasmo, abismado, aterrorizado. Quando amanheceu o dia, caí num sono profundo — quase mortal—, com pesadelos esparsos que se mesclavam à cena do horror noturno.
Nas noites que se seguiram, permaneci acordado, sob forte insônia, mas não me aproximei novamente daquela janela. E toda vez que me deitava em noites enluaradas, no batente da janela o gato branco me esperava, com seus olhos galácticos que me lembravam do palpitar dos corações pela calçada, e de repente uma brisa gélida tomava conta do ar anunciando a presença daquela criatura indesejada.

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