“Ânsia das horas místicas e aflitas,
De horas amargas das intermináveis
Cogitações e agruras insondáveis
De febres tredas, trágicas, malditas.”
Trecho do poema “Ocasos”, de Cruz e Souza.
Naquela época, vivia dias tristes e solitários. Morava num
cubículo numa dessas vielas da cidade velha, no segundo piso de um casarão
antigo perto da Praça da Sé. Era um cômodo apenas, muito abafado, de paredes
mofadas e teto baixo. Além da cama e uma carcomida escrivaninha abarrotada de
livros, a porta de entrada e uma janela, nada mais. Lá morei por treze meses,
os mais difíceis e atormentadores meses de minha vida.
Na segunda semana após minha chegada, adoeci. A princípio um
leve resfriado, febre, coriza e muita dor de cabeça. Depois vieram a tosse
seca, a falta de ar, o cansaço e uma súbita falta de apetite que me fazia
definhar um tanto a cada dia. Tuberculose, foi o que me disseram.
O temor da enfermidade me levou a um estado depressivo,
talvez crônico. Isolei-me naquele quarto de subúrbio por meses, bebendo água da
torneira e comendo — quando raramente vinha a fome — enlatados de carne e
feijão que havia estocado. Do corpo se apossara uma fraqueza infinita e eu
dormia, dormia muito, dormia o dia inteiro. Era nas madrugadas que um pouco de
disposição me invadia a alma e trazia resquício de ânimo para me levantar. Nos
livros já nem mais tocava. Quando acordado eu apenas sentava na beirada da
cama, de frente para a janela, e ficava observando os movimentos noturnos nos
becos, até onde a vista alcançava. Era o que eu fazia nas madrugadas, sentava,
tossia, escarrava e observa os bêbados, cachorros, bandidos e prostitutas.
Certa noite, vi um gato caminhando pelos telhados dos velhos
casarões. Um gato branco, de cauda grande e volumosa como um espanador. Foi
pulando de uma casa à outra até chegar bem próximo da minha janela. Era um
maravilhoso felino, de olhos claros e brilhantes, e uma pelagem de tamanha
brancura que parecia iluminar a noite mais que a própria lua cheia. Por um
instante ele ficou ali, parado, me observando, e eu a ele. Havia algo de
especial naqueles olhos, algo de anormal. Eram terrivelmente penetrantes, mas
causavam uma sensação bastante agradável. Coloquei um pouco de carne enlatada
no batente da janela e esperei que ele viesse, mas não veio. Depois de ameaçar
algumas vezes uma aproximação, o felino saltou para outros telhados e foi
embora.
Depois dessa noite, passei a ter sonhos cada vez mais
estranhos e sombrios. Pesadelos que me fazia acordar banhado em suor e num
estado alucinado que ainda hoje não sei ao certo se tinha alguma relação com a
visita inesperada daquele felino de olhos enigmáticos ou se foi apenas efeito
das febres tão comuns da doença.
Semanas se passaram e a doença me deixara ainda mais fraco,
tísico e taciturno. Alimentava-me muito pouco e, mesmo quando acordado, já não
sentia mais vontade de levantar. Sentia que a morte estava próxima e um terror
anômalo me provocava terríveis pesadelos e suores noturnos. A cama, os lençóis,
minhas roupas, ..., tudo fedia. Eu definhava como um indigente num quartinho
esquecido do mundo que eu ignorava. Ninguém, absolutamente ninguém em todas
aquelas semanas, bateu em minha porta para saber como eu estava. Eu não estava
bem. Talvez já estivesse morto e não tenha sido capaz de perceber.
Não, eu não estava morto. Estava ainda bem vivo. Vivo o
suficiente para presenciar a cena mais horrenda e tenebrosa de minha vida
medíocre.
Numa daquelas noites, acordei acometido por um súbito ataque
de tosse e falta de ar. Tonteei, senti vontade de vomitar e ainda com a visão
embaçada pude ver claramente o magnífico felino sentado no batente da janela.
Ele me olhava e não desviava o olhar. Apoiei-me na cabeceira da cama e fechei
os olhos por alguns segundos. Abri-os. Ele ainda estava lá, com seus olhos
fixos e penetrantes, como se quisesse agora minha aproximação.
Peguei o copo com água de cima da escrivaninha e dei alguns
goles. A tonteira diminuiu e busquei forças do âmago tuberculoso para um
arraste até a extremidade oposta da cama, onde ficava a janela. Meus músculos
relutavam em obedecer meus comandos, tamanha fraqueza. Mas eu cheguei. Sentei
na beirada da cama e olhei de bem perto a beleza esplendorosa daquele animal.
Para outras pessoas, talvez, poderia ser apenas um gato qualquer, mas não para
mim que vivia há meses trancado naquele muquifo. Ele era vida. Era beleza. Era
arte. Era, talvez, presságio.
Admirei-o por pouco tempo até perceber o que o felino tentava
me dizer. Ele não estava ali por acaso e, creio eu, não era um animal qualquer.
Seria um espírito mensageiro, um emissário a anunciar, por onde suas patas
tocassem, que algo terrível estava por vir. E veio.
Quando meus olhos se desviaram daquela brancura majestosa,
vi, lá em baixo, no beco mal iluminado, uma estranha e amedrontadora criatura.
Vagava pela rua, dardejante, sob a luz pálida da lua minguante. Não era homem,
não era bicho, não era nada! Nada que se parecesse com qualquer coisa que eu já
havia visto. Sobre si, uma longa e esfarrapada túnica cobria malmente seu corpo
forte e horrivelmente deformado, arrastando no chão a cada passo. De repente um
frio inexplicável foi adentrando o quarto e o felino, aos saltos, desapareceu
na noite.
A coisa se arrastava na calçada, silenciosamente, em direção
à esquina. Da outra rua, pude ver, vinha pelo menos uma dúzia de homens, alguns
bêbados, de encontro à criatura. Meu corpo estremeceu ao imaginar o encontro
deles com aquilo em alguns segundos. Pensei em gritar para avisá-los, mas não
tinha forças para isso. Aproximei-me da janela. Meus dentes roçavam uns nos
outros nervosamente e, como jamais imaginei que pudesse existir tamanha
monstruosidade, presenciei aquilo acontecer.
Quando viram a criatura na calçada, todos corajosamente se
armaram para capturá-la. Avançaram com paus, pedras, punhos e facas, mas não
valeram de nada. A coisa arrancou-lhes os corações com uma guinada e num
segundo estavam os homens caídos ao chão com os peitos abertos. Para onde foi
tal criatura não sei ao certo, sumiu na penumbra dos becos desertos. Sob o céu
noturno enluarado, a rua tornou-se rubra: ensanguentada. Fiquei atônito, pasmo,
abismado, aterrorizado. Quando amanheceu o dia, caí num sono profundo — quase
mortal—, com pesadelos esparsos que se mesclavam à cena do horror noturno.
Nas noites que se seguiram, permaneci acordado, sob forte
insônia, mas não me aproximei novamente daquela janela. E toda vez que me
deitava em noites enluaradas, no batente da janela o gato branco me esperava,
com seus olhos galácticos que me lembravam do palpitar dos corações pela
calçada, e de repente uma brisa gélida tomava conta do ar anunciando a presença
daquela criatura indesejada.