HOMEM CABEÇA {GIROTTO BRITO}



Nihil sub sole novi
tenebrae tantum 

Os limites são barreiras aos homens de sorte, àqueles cujas vidas abençoadas nunca lhes testaram os extremos da dor física e psicológica, nem mesmo lhes colocaram frete ao verdadeiro horror humano ou desumano. Quase todas essas pessoas, que vejo nas igrejas aos domingos, nas praças, nos bares, passeando pelo comércio, nas salas de aulas ou em tantos outros lugares, quase todos eles são homens e mulheres de sorte. Vestem-se, bem ou mal, com certa distinção e vivem suas vidas sem grandes transtornos. E, mesmo que ocasionalmente uma enfermidade ou violência venha a atingi-los, tudo logo se resolve bem, em vida ou em morte. Enquanto vivos, vivem bem; quando morrem, morrem bem. Dor, sofrimento, angústia, medo, crueldade, solidão, miséria e horror são experiências vivencialmente brandas a essas pessoas, mas que por falta de reais parâmetros acabam por acreditar que vivem o pior dos infernos. Eles não sabem o que é o inferno. Eu, no entanto, não sou um homem de sorte.
Talvez eu não seja a melhor pessoa para narrar essa história, mas o que posso fazer se sou o único que a conhece verdadeiramente? Pois bem, não peço aqui que acredite no que relatarei a seguir, apenas que considere a possibilidade de que possa ser verdade.
Eu tinha vinte e três anos quando tudo começou. Cursava o último ano do bacharelado em Direito e havia me mudado da casa dos meus pais, em Castanhal, para um pequeno quarto alugado no bairro do Marco, em Belém. Tinha uma rotina estabelecida que quase sempre seguia a risca: universidade – trabalho – casa. Nessa época, comecei a namorar uma garota do quarto semestre do curso de Psicologia, Elizabeth, e quando chegava o sábado era costume irmos aos bailes na Doca para dançar. Meus pais sempre ligavam, mas nunca foram me visitar no quarto onde passei a morar. Talvez por descaso com o filho primogênito, por preguiça ou por serem demasiadamente matutos e não gostarem da agitação das grandes cidades. O fato é que quando eu estava em casa, quase sempre ficava só, a não ser quando recebia a visita de minha querida Elizabeth.
Levava uma vida regrada e tranquila, dessas de homens de sorte. Tinha uma mulher a quem amava, um emprego que gostava e o suficiente para suprir  minhas irrisórias necessidades. O transcorrer dos meses, e as atribulações do fim do curso universitário, me afastaram dos bailes dos fins de semana, da namorada e do pouco convívio social. Mergulhei semanas em estudos dirigidos, leituras de artigos e traduções, de modo que quando percebi estava às três e vinte e três da madrugada sentado no chão com pilhas de livros e papéis ao meu redor, a garganta seca e o estômago vazio. Fome! Abri a geladeira e só tinha água. Lembrei que não saía de casa há alguns dias e não havia feito compras para o mês. Vou sair agora, deve ter algum lugar aberto — pensei. Numa capital como Belém sempre lojas que funcionam dia e noite. Vesti uma bermuda velha e razoavelmente limpa e desci para a rua.
Havia alguma coisa estranha naquela madrugada. A rua, que sempre fora bem iluminada, exibia-se erma e sombria, numa penumbra de fazer gelar os ossos. Um silêncio anormal para uma cidade com tantos carros, mesmo naquele horário. Dobrei na segunda esquina, entrando num beco ainda mais amedrontador. Juro que teria voltado para casa se a fome não fosse tão grande. O beco foi ficando cada vez mais estreito e escuro, e meus passos ecoavam solitários sob a lua encoberta por nuvens cinzentas. Percebi vultos nas vidraças das janelas, como se me observassem. Eu sabia que o fim do beco dava acesso à avenida e lá certamente encontraria o que comer, mas minhas pernas já se tornavam trêmulas e meu peito ardia com o pulsar violento do coração amedrontado. Outros vultos nas janelas.
Antes que minhas pernas vacilassem e me lançassem ao chão, duas luzes amarelas se acenderam no fim do tortuoso beco e o silêncio ameaçador deu lugar ao ronco estrondoso de um motor. Pneus cantaram, e a máquina luminosa veio em minha direção, tão rápida quando um corcel alado. Eu, desesperado, lancei-me cambaleante numa corrida em fuga. Dos dois lados apenas paredes e grades. No beco estreito a única saída era a esquina de onde eu viera. Corri alucinadamente, sem olhar para trás, quando senti uma forte pancada, e tudo se apagou.

•••

Elizabeth saía do banheiro apenas de toalha, vinha em minha direção e se lançava em mim. Eu tinha medo que seus pais voltassem. Haviam ido não sei onde, mas isso não importava. A toalha úmida escorregava pelo seu corpo molhado, seus seios tão firmes e arredondados como frondosas maçãs argentinas. Meus lábios se perdiam em suas curvas, deslizando suavemente do dorso à vulva, como esquiadores nas montanhas de gelo. Mãos que sabiam onde e quando tocar. Tocavam-me sedentas por retribuição e nossos corpos deslizavam um sobre o outro em movimentos síncronos, periódicos. Molhávamos de suor e gozo, no apogeu do prazer carnal, divino. 

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Conceber o horror de minhas sensações é, presumo, completamente impossível. Não há, ainda nestes tempos, palavras ou expressões que possam descrever com exatidão o que aconteceu comigo.
Permaneci imóvel, sem dizer nada. A visão foi lentamente voltando ao normal e percebi que Elizabeth não estava ali, fora tudo um sonho. Um belo e oportuno sonho. Tentei olhar ao redor, mas só enxerguei até onde meus globos oculares podiam girar. Minha cabeça estava presa, assim como minhas pernas, meus braços e todo o meu tronco. Só os olhos podiam mover-se, e o que a visão alcançava era um forro escuro de madeira polida, uma lâmpada incandescente, que irradiava uma luz amarelada e oscilante, e quatro quadros retangulares, posicionados cada um em uma parede.
Eu já não tinha nenhuma noção de tempo nem localização. Lembrei-me do carro que me atropelara, mas surpreendentemente não sentia dor alguma, apenas um sentimento agonizante de quem quer mover os músculos e não consegue. Minha respiração foi ficando cada vez mais ofegante, e pude sentir gotas de suor escorrer em minha testa.
Tudo era obscuridade. Quando nos encontramos em situações como essa a dor parte de onde menos esperamos: a imaginação. A aflição provocada pelo desconhecido gera no corpo sintomas absolutamente inesperados e, no meu caso, o primeiro sintoma foi a náusea. Num ataque súbito de pânico, comecei a vomitar os restos de comida de dias atrás — tempo que, naquele momento, não saberia contar — sobre meu próprio rosto. A massa fétida regurgitada entrou pelas minhas narinas, sufocando-me, e provocando violentas tossidas. Quando a tosse cessou, fiquei ali, imóvel, sentindo aquele enjoativo odor do vômito seco espalhado em minha face, enojando-me de mim mesmo.
Permaneci por muito tempo sozinho naquele cômodo mal iluminado. De modo que já havia urinado e defecado diversas vezes nas calças. O mau cheiro tomara conta de todo o cômodo e, quando sentia ânsia, o máximo que conseguia expelir era saliva. Já não sentia fome, apenas sede. A luz oscilante por vezes me dava sono e adormecia por tempos que não sei dizer. Aliás, tempo se tornou uma grandeza sem sentido para mim desde então.
Perdi as contas de quantas vezes rezei por uma solução. Orei para todos os Deuses que já me foram apresentados. Orações decoradas ou por mim criadas. Nada. Não veio resposta, nem solução. Nietzsche estava certo: Deus está morto! Ou não gosta de mim.
Quando acordei, certa vez, enxerguei frascos de soro pendurados num suporte acima de mim. Não apenas sono, mas também algum tipo de alimento líquido que descia por um tubo até — pelo que deduzi — meu pescoço. Acreditei, por algum tempo, que estava sendo tratado pelo atropelamento. Crença que logo ruiu. Pela primeira vez avistei alguém além de mim naquele quarto. Um homem de cabelos grisalhos e despenteados, óculos arredondado sobre um nariz grande e pontudo, rosto gordo com rugas e uma verruga no lado esquerdo do queixo. Vestia um jaleco velho e sujo, como aqueles de açougueiros, mas visivelmente mais rebuscado. Andava de um lado ao outro do cômodo, empurrando alguma coisa metálica cujo som parecia com o daqueles carrinhos de supermercado. Trouxe então uma luminária e acendeu sobre meu tórax. Tentei falar, dizer-lhe alguma coisa, mas minhas cordas vocais pareciam rompidas e não emitia som algum.
Ele ajeitou o foco da luminária e pegou algum instrumento. Senti meu corpo suar e meu coração palpitava alucinadamente. De súbito, meus olhos se arregalaram, tamanha a dor que penetrou meus nervos. O homem, como seu bisturi na mão, cortava-me o abdômen sem qualquer anestesia. Eu podia sentir o fio da lâmina abrir minha carne enquanto o sangue esguichava sobre meu peito. Cada corte era como uma estaca nos ossos, de modo que vivi a dor no seu estado mais extremo, o horror, a escuridão.

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Sorri como um menino e vi seu sorriso retribuir o meu. Dentes claros e alinhados, não como os meus, amarelados. Suas mãos eram suaves como um lençol de seda. Deu-me um abraço apertado, roçando seu corpo nu ao meu, mordendo minha orelha levemente e sussurrando palavras de amor ao meu ouvido. Elizabeth sabia como despertar minha libido.

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Vou tentar, dentro das minhas limitações de narrador, descrever o horror blasfemo e a inacreditável repulsa pelo que vi quando acordei. O cômodo estava, então, fortemente iluminado. Na boca, o sabor do sangue. No lugar dos quatro quadros havia espelhos, um em cada parede, nos quais pude enxergar a horrenda figura de mim mesmo.
Fizeram de mim uma obra de arte macabra, uma monstruosidade além do que é humanamente concebível. Arrancaram-me os membros: braços, pernas, pênis. Do meu tórax, restaram apenas os órgãos vitais: coração, fígado, pulmão, rins, intestinos. Todos conectados e pendurados em suportes metálicos ao redor de minha cabeça.
Minha imagem refletida no espelho era — e ainda é — extremamente perturbadora, uma blasfêmia colossal, inominável. Tornei-me um monstro, e só não me lancei à loucura, pois sei o quão mais monstruoso é o homem que me deixou assim, nem vivo nem morto, um ser horrendo e imóvel.
Acreditem ou não, eu conheci os extremos da dor física e psicológica. Os limites que são barreiras aos homens de sorte. Eu, no entanto, não sou um homem de sorte. Mas tive sorte por ter tido Elizabeth.

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A VISITA {SAMANTHA DE SOUSA}

Henry Füssli

Não havia adormecido ainda, quando sentiu que alguma coisa se arrastava sobre a cama. Era uma coisa pesada ao ponto de estremecer o colchão. Tentou mover-se para verificar o que era aquilo, mas não conseguiu movimentar um único dedo. À medida em que a coisa se aproximava dela, seu coração batia tão forte que doía no peito. A respiração estava pesada. A voz não saía. Sentiu, então, que algo a tocava, deslizando dos cabelos até as partes íntimas. Precisava sair daquilo, seja lá o que fosse. Quanto tempo já durava? Meia hora? Toda a madrugada? Um minuto? O tempo congelou-se. Quando uma leve iluminação invadiu o quarto, sentiu-se libertar, o corpo moveu-se bruscamente e toda ela tremia. Não havia mais ninguém no quarto.

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