Um fato sobre mim: nunca fui um homem de medos. Vi – ou ouvi – pouca
coisa nessa minha vida que me fez experimentar tão infantil sentimento. Medo. Pra
mim sempre foi coisa de crianças, ou de mulheres. Sim, porque nosso pai não
aceitava que filho homem seu borrasse as calças por qualquer coisinha... Por
isso dormíamos todos no escuro, sempre; e, no escuro, eu apertava bem os olhos
na inútil tentativa de não enxergar a escuridão reinante para além das minhas
pálpebras. Pro nosso pai, homem tinha que aguentar firme, sempre, acontecesse o
que acontecesse. Talvez por isso o que vou relatar agora eu tenha guardado há
alguns anos, com receio de abalar a minha reputação de homem destemido cultivada
– ou melhor, imposta – ao longo desses quase cinquenta anos.
Eram quase cinco e meia da manhã quando o ônibus encostou na beira da rodovia
e desci apenas com uma mochila nas costas. Ainda estava bastante escuro, e,
fora o ônibus que se distanciava, não havia qualquer movimento, ou sinal de
vida. Estava sozinho. Arrumei os óculos e encaminhei-me para um pequeno abrigo
improvisado ao lado da rodovia, estrategicamente erguido na confluência entre a
rodovia e uma estrada de terra, formando um pequeno trevo. Sentei-me num tosco banco de madeira. O telhado de palha há
muito gasto deixava que aqui e ali se visualizasse partes do céu estrelado. E
ali, sozinho no meio do nada, esperei por um mototáxi. A rodovia seguia direto
para o litoral, cerca de trinta quilômetros; mas o local para onde eu iria ficava
a quase 15 quilômetros por aquela estrada de terra, sem qualquer iluminação.
Estava sentado de costas para ela, virei-me; até onde pude ver, a estrada
seguia quase em linha reta e depois fazia uma curva, desaparecendo por trás de
um denso arvoredo.
O que é que estou fazendo aqui?,
perguntei-me consultando o relógio apenas para constatar que o ponteiro parecia
estar tão cansado quanto eu. Fechei os olhos e passei as mãos no rosto para
espantar o sono.
Havia sido convocado para ser mesário naquelas eleições justamente para
aquele lugar, cujo nome – mesmo agora – não gosto nem de mencionar e do qual sequer
ouvira falar. Pelas informações que colhi antes de viajar, soube que a tal vila, de pouco mais de 40 casas, era bem
pacata, com um igarapé imenso pelo qual era possível até navegar num pequeno
barco. Por conta disso havia me animado em ir pra lá. Todavia, nas atuais
condições em que me encontrava, sozinho naquele lugar, comecei a repensar na
loucura em que havia me metido. Pensei em Amanda e em Julia, nossa filhinha de
dois anos apenas, seguras no nosso apartamento minúsculo, muito provavelmente
dormindo àquela hora. Olhei pro céu estrelado. Fiz um sinal da cruz na altura
do peito. E esperei.
Passado um tempo, ouvi um barulho em direção à estrada de terra. Olhei
de imediato por cima do ombro. Um homem, aparentava ser idoso, vinha
caminhando. Na hora fiquei receoso, confesso. Mas o homem vinha a passos
lentos, e parecia inofensivo. Deu bom dia.
— Bom dia —
respondi, mesmo tendo plena certeza que ainda era noite.
O homem se sentou
em outro banco à minha frente, o rosto meio oculto nas sombras.
Ele não cheirava
nada bem. Imaginei que deveria ser algum mendigo, ou um andarilho, comuns
nessas estradas. Mas ele falou que estava indo pra cidade, receber sua
aposentadoria. Assim, presumi que o fedor deveria ser por falta de asseio, ou
causado pelo esforço de andar os 15 quilômetros, pois dissera vir da tal vila
para a qual eu estava me dirigindo.
— O senhor não tem
medo de andar sozinho, uma hora dessas, por uma estrada escura assim?
Ele passou a mão
no pescoço, como se alguma coisa lhe comprimisse a garganta. Tossiu.
— Medo... — disse
depois de cuspir no chão. — Já tive, mas hoje não...
Fiquei calado.
— O senhor não é
daqui não, né? — Ele perguntou. — Não tem medo de ficar aqui sozinho?
Mexi-me no banco.
— Tô aqui a
trabalho... — respondi. — E pra falar a verdade, não tenho medo não; tenho
receio, já que não conheço essas bandas... mas medo não. Aliás, nunca tive
medo, de nada.
Ele pigarreou e
uma lufada de vento trouxe aquele nada agradável cheiro direto às minhas
narinas. Virei o rosto tentando disfarçar.
— Ah, se o senhor
morasse pra cá ia pensar diferente...
Fiquei
interessado.
— Como assim?
— Essa estrada,
meu rapaz, não é fácil... Não é pra qualquer um não.
Olhei pra estrada.
— Mas porquê? —
quis saber.
— Antigamente,
antes de chegar pra cá esses carros e moto-sei-lá-o-quê, o povo só vinha em grupo
de dez ou mais, geralmente nessa hora da manhã pra pegar o ônibus que acabou de
passar... Tudo indo pra cidade fazer compra, receber pagamento, essas coisa...
— Mas porquê em
grupo, tinha muito bandido por essas bandas?
O velho riu.
— Bandido? Nem
bandido se atrevia a andar por aqui, seu moço...
Engoli. Olhei
novamente para a estrada. Ele continuou:
— Eram outras...
“coisas” — fez as aspas com os dedos —, entende?
Balancei a cabeça.
Não entendia.
— Visagem,
assombração, essas coisa, entende?
Eu não entendia.
Ridículo ele falar uma coisa dessas.
— Besteira, isso
não existe — disse rindo. Só podei ser coisa de interior mesmo...
— O senhor fala
isso porque não passou pelo que eu passei... — o velho disse, passando a mão
novamente na garganta.
Recostou-se no
banco.
— Numa vez fiquei
foi aperreado nessa estrada aí...
Com a curiosidade
aumentando, apoiei o queixo nas mãos. O velho continuou:
— ... O pessoal
sempre saía às sexta-feira, lá pelas quatro da madrugada. Mas eu tinha uma
consulta na quinta, não dava pra faltar. Então tive que vir de lá sozinho,
aliás, só eu e Deus, umas três e meia da madrugada, já pensou? Mas eu já tinha
feito isso outras vez, não tinha nada a temer. Era o que eu esperava... — o
homem tossiu e cuspiu no chão, depois limpou a garganta. — E tava eu andando
tranquilamente, assim, sabe, um pouco apreensivo mas tranquilo; até que já
quase na metade do caminho, passando o velho cemitério que fica perto do rio
Mearim, o senhor conhece o rio Mearim? — fiz que não com a cabeça — Ah é, o
senhor não é daqui... Pois então, passando o cemitério tive a impressão de que de
dentro do mato alguma coisa me observava...
Me endireitei no
banco.
— Sabe a sensação de
que tão te observado? — não respondi. — Pois eu podia jurar, seu moço, que eu tava
sendo observado. Mas eu era corajoso, como o senhor; não me intimidei, não, nem
corri nem nada. Primeiro que estava no meio do trajeto, longe lá da vila e aqui
da parada. Se corresse, seria ruim; se ficasse, né... Resolvi ficar, aliás,
continuar a viagem. Poderia ser algum animal, uma onça, muito comum naquele
tempo... Era uma noite estrelada como esta e a lua tava alta no céu. Conseguia
enxergar bastante a estrada à minha frente por que naquele tempo era de areia,
e não de piçarra como agora... Lá do mato, um farfalhar indicava que alguma
coisa, além de me observar, parecia que tava me seguindo. Fiz o sinal da cruz e
continuei o meu caminho. De repente alguma coisa foi jogada do mato até à
estrada. A coisa que eu não fazia ideia do que era caiu a alguns metros na
minha frente. Ah, seu moço, na hora um arrepio levantou os cabelos da minha
nuca! Eu era corajoso, te juro, mas quem disse que olhei pra’quela coisa? Tava
louco! Olhei não! Custasse o que custasse, eu não ia olhar, mas jeito maneira...
Não mesmo! Mas ia ter que olhar, né, já que tava no meu caminho. Segui a
diante. Tentei olhar pra frente, pro fim da estrada. Não deu. À medida que me
aproximava os olhos eram atraídos para aquela “coisa” ali, sei lá, coisa do
cão! A uns dois metros não aguentei mais e baixei os olhos... Sabe o que era,
seu moço? — percebi que havia segurado a respiração. — Era uma mão, uma mão de
gente, assim, ó, com os dedo e tudo!
— Uma mão? —
percebi minha voz um tanto embargada.
O homem fez que
sim com a cabeça, passando a mão na garganta mais uma vez.
— Uma mão! Pense
num desespero que me deu. As perna começaram a tremer que nem vara verde na
correnteza, a cabeça pareceu ficar des’tamanho, inchando que nem balão...
Segui, andando bem mais apressado. Pra minha desgraça, seu moço, mais à frente
outra coisa foi jogada. E sabe o que era? Uma perna! E assim foi. Um braço, um
pé, uma coxa... Eu só ia desviando, olhando de canto do olho, já quase
correndo. E sabe o que é pior? Eu não olhei pra traz nenhuma vez, mas tinha a
certeza de que o corpo tava se montando...
Não apenas os meus
olhos estavam arregalados, mas a minha respiração estava levemente alterada;
uma estranha atmosfera pareceu baixar naquele momento.
— Só faltava uma
coisa — o velho continuou —: a cabeça... Fiz várias orações em pensamento, o
sinal da cruz... Então, mais na frente... a cabeça caiu. Caiu assim, com um
baque abafado, molhado de sangue, parece... E ela veio rolando, rolando, e
parou na minha frente, nos meus pé. Eu parei com o susto, quase caí. Arregalei
os olho; a respiração assim, ó, entrecortada. A cabeça mantinha os olho fechado,
a boca contorcida numa expressão de dor, sei lá, crueldade aquilo. Não quis
olhar pro mato pra ver se alguém, ou alguma coisa, tava mesmo lá, me
observando, seguindo; fiquei imaginando que ia ter o mesmo destino... Foi então
que ouvi o barulho de passos atrás de mim. Ah, seu moço... eu fechei os olhos,
temendo olhar pra ver quem ou o que era. Então o barulho parou. Voltei a abrir
os olhos. Eu estava tremendo! Olhei novamente pra cabeça no chão. Seus olhos
tavam abertos, e piscando, seu moço!, pra mim! Foi quando uma mão tocou no meu
ombro...
Eu estava
simplesmente paralisado. Sem qualquer reação.
— M-mas o que acontece-ceu?
— perguntei, e um arrepio subiu pela espinha, parando na nuca.
O homem passou a
mão na garganta. Tossiu.
— O que aconteceu?
— escarrou e cuspiu. — E eu corri; corri com toda a força que ainda me restava!
O homem se calou e
abaixou a cabeça. Eu também resolvi ficar calado, impressionado que estava com
aquele relato.
— Já tinha ouvido
sobre essa aparição — o homem voltou a falar e eu levei um baita susto —, mas nunca
tinha dado crédito. Diziam que era o fantasma de um senhor que foi brutalmente
assassinado naquela estrada e esquartejado...
Meus olhos
continuavam arregalados.
— Já imaginou o
senhor nessa situação? — ele perguntou.
— Nunca... —
respondi apreensivo, mas não querendo parecer medroso. — Mas mesmo assim isso
foi há muito tempo, não é? Hoje em dia as coisas mudaram...
— Verdade... — ele
respondeu pensativo. — Mas tem coisas que não mudam assim, tão rápido...
O homem abaixou a
cabeça e começou a coçar freneticamente o pescoço. Senti uma sensação estranha,
como se estivesse sendo observado por todos os lados... Uma atmosfera pesada
caiu. O céu não estava tão estrelado como antes, e a escuridão ali parecia
quase palpável... Olhei pro homem e me deu pena. Ele continuava a coçar a
garganta de cabeça baixa, os gestos mais lentos, bem mais lentos, como em
câmera lenta. Quando levantou a cabeça notei, pelo facho tênue de uma luz que
passou por um dos rasgos da cobertura, que o seu rosto se contorcia
penosamente, e havia um pequeno corte em seu pescoço, logo abaixo do pomo de
Adão. O homem levantou mais a cabeça e um esguicho de sangue saiu do corte. Meu
olhos se arregalaram mais ainda, como se fosse possível. A cada movimento, o
corte se abria mais e mais, o sangue esguichando em abundância. A primeira
ideia que me veio à mente foi correr. Mas me vi paralisado. Não conseguia
articular palavra alguma. O rosto do homem se contorcendo em agonia... Até que
a cabeça dele tombou de lado, e, como se fosse puxada, veio rolando até os meus
pés. O corpo inteiro se fez em pedaços e um fedor insuportável infestou o local.
Gritei, e apenas um som abafado, gutural, saiu da minha garganta. Meus
movimentos também pareciam estar em câmera lenta, como se cada articulação
rangesse, estralando os ossos. Caí do banco. De costas, fui me arrastando
penosamente sem saber o que fazer ou pra onde ir enquanto via os pedaços do
corpo começarem a procurar seus pares, um zumbido no ar, como dezenas de vozes
distantes falando coisas incompreensíveis... Era o meu fim! O que quer que
fosse acontecer eu tinha certeza que não sairia vivo. Pensei em Amanda e Julia:
meu coração ficou apertado. Pensei no meu pai. A coragem dele em nada me
serviria naquele momento... Os olhos do homem se reviravam nas órbitas fundas,
as mãos aracnídeas se arrastando em minha direção... Eu me arrastando de costas
sem conseguir pensar em mais nada que não fosse sair dali. Mas seria
impossível. Tentei gritar por ajuda mais uma vez e só um monte de baba caiu da
minha boca escancarada, minha língua parecia ter aumentado quase um metro e eu
não conseguia mantê-la dentro da boca... E o corpo já quase totalmente
montado... Faltava apenas um braço que se contorcia em minha direção pelo chão
e a cabeça cujos olhos estavam cravados em mim e cuja boca sussurrava coisas
que eu não entendia... O corpo veio se arrastando em minha direção... Eu me
arrastando tentando inutilmente fugir... Foi então que uma forte luz brilhou às
minhas costas e eu me virei imaginando o sol nascendo. Minha visão foi ofuscada
e fechei os olhos. Ouvi o barulho de um motor se aproximando. Abri os olhos
embaçados pela falta dos óculos – caído em algum lugar. Um vulto de camisa
amarela encostou e desligou os faróis da moto.
— Bom dia, patrão,
esperando corrida?
Eu não conseguia
falar. Não conseguia nem me levantar. Virei-me desesperadamente para ver o
corpo, mas ele havia sumido.
O mototaxista
apenas riu e me ajudou a levantar.